2.25.2012

HUASCAR E CHUQUI HUIPA - BODAS DE SONHO EM CUZCO (IMPÉRIO INCA)

                

                      (Chuqui Huipa / Chuqui Llanto - desenho de Guaman Poma)


Voltar no tempo para testemunhar, ao menos em nossos sonhos, e na  narrativa dos cronistas, o casamento de Huascar, o último Inca, e sua irmã Chuqui Huipa.

Huascar voltara a Cuzco, logo depois de assistir, pessoalmente, à parte final das exéquias, em Yucay, pela morte de seu pai e soberano do Tahuantinsuyo, Huayna Capac. O luto fora vivenciado na capital e em todo o império com grande sentimento, lágrimas e infinitos sinais de tristeza.


Era hora de pensar na sucessão.

 
Com a permissão e os presságios favoráveis do Sacerdote do Sol e o consentimento dos demais nobres (1), Huascar decidiu casar-se com Chuqui Huipa (2), sua irmã por parte de pai e mãe, de acordo com a leis incaicas. Segundo o cronista Frei Martin de Murúa, chamaram Rahua Ocllo, esposa de Huayna Capac, mãe de Huascar e Chuqui Huipa, e todos juntos disseram a ela como haviam determinado que seu senhor Huascar tomasse por esposa a Chuqui Huipa, sua irmã.

Ao ouvir essas razões e vendo a vontade de seu filho, conselheiros e nobres, Rahua Ocllo, não se sabe por qual motivo, recusou, negando o que ele lhe pedia, dizendo que não queria dar-lhe sua irmã por mulher.

"Huascar Inca teve grande raiva e com cólera e desprezo, levantando-se de onde estava sentado, disse à sua mãe palavras muito feias e desmedidas, tratando-a com desdém e desprezo, as quais, ouvidas por ela, insultada, levantou-se e foi para sua casa, deixando seu filho e conselheiros com grande fúria. "(Murúa)


Ao ver a atitude de Rahua Ocllo, os conselheiros de Huascar determinaram que, embora sua mãe não quisesse, ele deveria pedir sua irmã Chuqui Huipa, por esposa, a seu pai, o Sol, com sacrifícios e oferendas e outras coisas que a ele fizesse e oferecesse e que desse muitas e ricas dádivas ao corpo de Tupac Inca Yupanqui, seu avô e pai de Rahua Ocllo, sua mãe. Com esta determinação, Huascar, seguindo a ordem e o conselho dos seus,  primeiro dirigiu-se ao local onde se encontrava a múmia de Tupac Inca Yupanqui com grandes presentes. Adcayquy Atarimachi, Achache e Manco, parentes encarregados de cuidar e falar em nome de Tupac Inca Yupanqui, aceitaram em seu nome, e a concederam por esposa.

De lá, Huascar foi ao templo do Sol com grandes sacrifícios e ofertas e pediu ao Sol, seu pai, Chuqui Huipa, sua irmã, como esposa legítima, e todos os sacerdotes do templo, juntos, em Seu nome, a deram por esposa, recebendo os presentes. Ele, querendo que o casamento fosse com o consentimento de sua mãe, Rahua Ocllo, para acalmá-la e agradá-la, deu-lhe ricos presentes de ouro, prata, roupas, servos e, solenemente, mais uma vez, todos os sacerdotes e irmãos de Huascar e os conselheiros foram até ela e juraram Chuqui Huipa por sua esposa legítima.

Houve  festas, com danças e bailes, em Cuzco,  pelo juramento que fora reiterado, e ordenou-se que, durante todo o mês, fossem acesas luminárias em todas as torres e casas da cidade e que tocassem todo tipo de música das nações que ali estavam e, como ordenado, cumpriu-se.

Depois que o Sol (Inti), a múmia de Tupac Inca Yupanqui e Rahua Ocllo concederam Chuqui Huipa como esposa a Huascar, acordou-se que se efetuasse o casamento. Para maior majestade e grandeza, e maior ostentação, concordou-se que o Sol (a representação que ficava no templo) e a múmia de Tupac Inca Yupanqui fossem ao casamento e que ali estivessem representando a pessoa de Huayna Capac, pai da noiva, pois eles a haviam dado por esposa, em seu nome, e que Huascar saísse, com a imagem do trovão para encontrá-los.

Para maior celebração, ordenaram que a casa de Tupac Inca Yupanqui e a de Huayna Capac fossem cobertas de adornos de ouro e prata, e, assim, quatro torres foram cobertas e as paredes foram todas revestidas de fina guarnição. Aqueles que ocupavam o lugar de Tupac Inca Yupanqui e Huayna Capac e os sacerdotes do Sol, mandaram que a casa de Huascar e a da noiva fossem revestidas de adornos de ouro e rica guarnição, e todas as casas dos Incas mortos tivessem seus telhados cobertos de penas e as paredes de fina guarnição e as torres da praça fossem adornadas da mesma maneira e nela, dia e noite, enquanto durassem as festas, deveria haver muita música, canções e danças.

Cuzco brilhava ao sol com o seu ouro e prata e, à noite, suas torres ostentavam as luminárias; muralhas de pedra em miríades de estrelas como se o céu noturno baixasse à terra, as chamas das lâmpadas crepitando a felicidade do Inca e sua noiva.

No dia do casamento, Huascar saiu de sua casa acompanhado da imagem do Sol, a múmia de Tupac Inca Yupanqui, seu avô, e a de Huayna Capac, seu pai, todos os sacerdotes, irmãos, parentes, conselheiros, orelhões e os chefes de seu exército, e uma multidão de pessoas. Chegaram à casa de Rahua Ocllo, que estava ricamente revestida e, ali, receberam e entregaram Chuqui Huipa a Huascar, com toda a solenidade possível e todas as cerimônias que, entre eles, costumavam realizar em tais casamentos.

"Estiveram ali desde a manhã até a hora de vésperas e depois a pegaram para levar à casa de seu marido, Huascar, com muita música e cânticos. Por onde ela fosse, com seu marido, todo o caminho estava repleto de ouro e prata em pó, infinita "chaquira" (3) e plumagens, algo nunca antes visto em festas e casamentos de qualquer monarca do mundo desde o primeiro homem, até agora, pelo menos, pois não está escrito em qualquer autor, nem o que diremos mais tarde. Foram desde Casana até Marucancha, que eram as casas e residências de Huascar Ynga, e tudo o que daquele dia ficou até a noite se consumiu em bailes, cânticos, danças e regozijo. No dia seguinte, por mais autoridade e grandeza, vieram todas as nações que estavam no Cuzco para fazer festas a sua senhora e duraram mais de um mês. "(Murúa)

Huascar Inca queria celebrar seu casamento de modo que fosse lembrado para sempre. Então, mandou fazer, de ouro e prata, todos os tipos de milho existentes e todas as variedades de ervas que eles comiam. Também fizeram todos tipos de pássaros, pombos, garças, papagaios, falcões, tordos, águias, gaviões, condores, e muitos tipos de peixes do mar e de água doce. Lenha, inteira e rachada, e toda a diversidade de animais terrestres que havia no Tahuantinsuyo foram feitos de ouro e prata e plumagens. Comida feita de ouro e prata era servida nas mesas, a todos os que se encontravam na festa, pelos servos de Huascar, como lembranças do casamento, como se fosse comida de verdade, como se tivessem essa finalidade;  e todos os cântaros, arcas pequenas, copos e demais vasilhas eram de ouro e prata.

Mandaram trazer um número infinito de animais vivos, assim como ursos, pumas, gatos selvagens, macacos, veados, vicunhas, lhamas, em trajes de cores diferentes, feitos de propósito para fazer parecer que haviam nascido com eles e que haviam sido domesticados para esse efeito.

"Nem como eu disse acima, nenhum senhor ou príncipe do mundo, pois nem mesmo em invenções, majestade e aparato tenha havido muitas que a tenham excedido, nenhuma de tal abundância de ouro ou infinidade de prata que, como se fossem iguarias comestíveis se ofereciam aos convidados. "(Murúa)

Algum tempo depois, uma embaixada de seu meio-irmão Atahualpa foi recebida por Huascar Inca. Como isso aconteceu em meio aos prazeres do sucesso, ele ficou muito satisfeito com ela, recebendo os mensageiros de seu irmão com honra, concedendo-lhes favores. Estes mensageiros trouxeram muitos presentes e ricas dádivas para Rahua Ocllo e para Chuqui Huipa, que os receberam muito bem, o que, sabido depois por Huascar, fez despertar em seu coração a suspeita, certamente causada por ciúme.
Porque Atahualpa foi o único que não foi a Cuzco para o funeral de seu pai, Huayna Capac, nem para o casamento de seu meio-irmão Huascar.

Gaman Poma, em Nueva Corónica y Buen Gobierno (1615) (Nova Crônica e Bom Governo), diz: "a décima segunda coia [rainha], Chuqui Llanto, coya: Dizem que era muito bonita e branquinha, que não tinha nenhuma mancha no corpo. E no semblante e muito alegre e cantora, amiga de criar passarinhos. E não tinha coisa sua,... ...tinha sua lliclla [manta] azul clara e o do meio, verde escuro, suacxo [saia] verde e o de baixo de tocapu  [tecido de pano trabalhado]. Puramente boa e alegre, contentava a seu marido, ... "


"Foi Chuqui Huipa mulher de boa disposição e bonita, embora um pouco morena, que toda esta linhagem o foi sempre. Seus adornos (4) eram pomposos e soberbos quando ela saía de casa, iam em sua companhia número infinito de índios importantes e servos seus, e rodeada de muitas princesas (ñustas) bizarramente vestidas. As paredes do seu palácio eram pintadas de diferentes modos de pintura, porque era estranhamente aficionada a isso, e os adornos e quadros eram de finíssimo Cumbi de diferentes figuras, as quais naquele tempo se fazia sutilíssimas."
(Fray Martín de Murua, Historia General del Peru, Libro I)

Por tudo o que aconteceu antes do casamento e pela grandeza de sua realização, só posso crer que os dois se amavam muito. Foi, sem dúvida, o dia mais feliz de suas vidas.
Talvez, como conta uma antiga tradição inca, Huascar , com suas próprias mãos, solenemente tenha calçado uma sandália no pé direito da eleita de sua vida. 




Havia um provérbio incaico que dizia "casa-te com teu igual" (Varela, 1945).


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(1) O soberano do Tahuantinsuyo, chamado Inca ou Sapa Inca, exercia um poder absoluto; governava por  direito divino e era considerado descendente direto do Sol,  recebendo honrarias divinas. Embora pudesse ter várias mulheres, dentre as escolhidas, o Inca casava-se com uma única mulher, a Coya, que deveria ser sua irmã, para manter a linhagem de sangue divino; só um filho da Coya tinha direito à sucessão. Os descendentes de um Inca formavam um novo ayllu, clã familiar de sangue real, e os membros de um ayllu, e todos os indivíduos da nobreza, exclusivamente pertencentes a Cusco, furavam as orelhas, nas quais colocavam grandes e pesados anéis (pakoyoq em quéchua), sendo chamados pelos conquistadores espanhóis de orejones. Na época da conquista espanhola havia 11 ayllus reais no Cusco. Nessa época havia uns 500 descendentes do Inca Manco Capac (o primeiro) por linha masculina. Segundo os historiadores, no ano de 1603, havia 567. (*) 

(*) Bernabé Cobo, o.c., libro 12, cap. 26; Garcilaso, parte I, libro 5, cap. 2; Cieza de Léon, libro 2, cap. 65.

Os imperadores incas eram Intipchurin (Filhos do Sol). Considerava-se o Sol como Divino Pai da dinastia incaica.

O Império Inca teve dois momentos:

O império legendário

1. Manco Capac
2. Sinchi Roca
3. Lloque Yupanqui
4. Mayta Capac
5. Capac Yupanqui
6. Inca Roca
7. Yahuar Huacac
8. Wiracocha Inca

E o império histórico (expansão)

 9. Pachacútec
10.Túpac Inca
11. Huayna Cápac
12. Huáscar
13. Atahualpa (na verdade Atahualpa não pode ser considerado Inca, pois não era filho de sangue puro).

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(2) (Chuquillanto, Mama Huarcay, Mama Guarqui, Cori Illpay) - Chuqui é Aymara: significa "ouro" Cori é Quechua: significa o mesmo metal.

(3) chaquira
1.f. amer. Colar ou pulseira feita com miçangas, contas, conchas, etc., Utilizados como decoração.

(4) arreio
sm (de arrear) 1 Adorno, atavio, enfeite, ornamento.




Bibliografia

Fray Martín de Murúa, Historia General del Peru, Libro I.

Felipe Guaman Poma de Ayala, El Primer Nueva Corónica y Buen Gobierno. 


                                                         




2.23.2012

MANCO INCA - JOGO DE MORTE EM VILCABAMBA (IMPÉRIO INCA)

                                         (vista interior do Palácio de Sayre Topa)




"Este fim teve Manco Inga Yupanqui, filho de Huaina Capac, senhor universal deste reino,
 tendo, desde que deixou Cuzco, pelas humilhações e tirania de Hernando Pizarro e seus homens, passado inúmeros trabalhos e desventuras de um lado e de outro, seguido e perseguido pelos espanhóis, dos quais, vencido e vencendo, escapou milhões de vezes, tudo para preservar a sua liberdade, e o que, tantas vezes, o marquês Pizarro e seus irmãos, e outros capitães, não puderam fazer, com tantos soldados e índios amigos, acabou e concluiu Diego Mendez, mestiço a quem, e a seus comparsas, Manco Inga havia recolhido e protegido e feito o bem em sua casa, para que se veja até onde chega uma traição. "(Murúa)

Recorri a Frei Martin de Murúa para entrar em uma época da História em que grandes embates dilaceravam os Andes; um eterno pôr de sol vermelho-sangue a refletir na terra molhada de rasgos ensanguentados, como rastros.
Naquele momento, muitas lutas aconteciam como resultado da morte de Don Diego de Almagro. Determinados a vingar sua morte, o Capitão Joan de Herrada e outros amigos, conspiraram, na Ciudad de los Reyes (1), levando consigo o filho de Almagro, que tinha o mesmo nome do pai.

Conjuraram-se e foram para a casa onde vivia o Marquês Don Francisco Pizarro, matando-o e ao Capitão Francisco de Chaves, levando o corpo do Marquês e arrastando-o pela praça. Muitas pessoas juntaram-se a eles, naquele momento, todas aquelas que antes haviam seguido Don Diego de Almagro, tomando seu filho como líder. 
Quando Vaca de Castro chegou, enviado pelo Rei de Espanha, reuniu aos que eram leais ao serviço de seu rei, enfrentando Don Diego de Almagro, o moço, em Chupas, a duas léguas de Guamanga. Alí, então, lutaram e foi desbaratado Don Diego de Almagro, que  fugiu para Cuzco, onde foi preso, e teve a cabeça cortada por ordem de Vaca de Castro.

Da batalha de Chupas, quando foi desbaratado Don Diego de Almagro, o moço, fugiram Diego Mendez, o mestiço, Barba Briceño e Escalante e outros soldados, no total treze companheiros. Fugiram pelas montanhas até Vilcabamba, onde estava Manco Inca, que os recebeu muito bem. Disseram-lhe que  muitos espanhóis viriam servi-lo e que, com eles, tornaria a recuperar sua terra e venceria, arrancando os espanhóis que estavam nela. Disseram isso a Manco Inca, temendo que os mandasse matar e para lisonjeá-lo e obter sua gratidão. Quanto a Manco, ele lhes dispensou um ótimo tratamento em tudo, sem a intenção de prejudicá-los, o que os fez perder o medo.

"Passados alguns dias, Manco Ynga soube, através dos espiões que tinha, em Cuzco e em outros lugares, como um curaca chamado Sitiel, caçoando de Manco Ynga, na presença de muitos cristãos, disse a Caruarayco, chefe de Cotomarca: vamos prender Manco Ynga em Vilcabamba e Caruarayco será Ynga e Senhor, e todos nós o obedeceremos e Manco Ynga o servirá e conduzirá a tiana, que é o assento onde os chefes e principais se assentam. "(Murúa)

Ao saber disso, Manco sentiu-se muito magoado e imaginou como vingar-se daquela insolência que Sitiel fizera, tomando como grande afronta o atrevimento de seu súdito ao dizer tal coisa. Disse a Diego Mendez, e aos demais, que fossem prender àquelas pessoas e eles disseram que sim, oferecendo-se com grande disposição para fazê-lo. De acordo com Murúa, Manco Inca mudou de ideia porque pensou que eles estavam muito cansados ​​de tudo o que lhes acontecera e decidiu enviar seus próprios homens, os mais corajosos, todos os capitães que estavam com ele e todos os seus próprios capitães, ficando com, apenas, quinhentos para sua guarda pessoal. Ordenou-lhes que fossem com toda a pressa, agindo na surpresa, e tentassem trazer vivos Sitiel e Caruarayco. Desse modo, partiram os incas para cumprir sua ordem, prontamente.

"Ninguém há de negar quão feio e abominável vício seja o da ingratidão, porque fazer o bem a quem me fez mal é obra de cristão... "(Murúa)


Diego Mendez Barba e seus companheiros só  escaparam com vida porque foram acolhidos e amparados por Manco Inca que, em vez de tratá-los como inimigos, dos quais tantos prejuízos havia recebido, acolheu-os e deu a eles de comer e beber, e os manteve em sua companhia, fazendo-lhes todo o bem possível.

Manco Inca, após ter enviado seus capitães e sua gente, manteve os espanhóis junto de si. Com um excelente  tratamento e cortesia, em sua presença, mandava que se colocasse a mesa e lhes dessem de comer e beber, abundantemente, obsequiando-os, como se estivessem em casa.
"Já os espanhóis parece que estavam enfadados de tantos presentes e fartos de estarem ali, e quiseram voltar a Cuzco, aqui fora, e não sabiam como fazê-lo com segurança, para que a eles não prendesse Vaca de Castro, e combinaram, entre si, uma enorme traição. "(Murúa)

Conspiraram para matar Manco Inca e, matando-o, pudessem fugir incólumes,  pensando que, por aquele serviço tão notório, Vaca de Castro iria perdoá-los e fazer-lhes concessões porque, dessa forma, a terra seria pacificada. Diego Mendez decidiu matá-lo quando a  ocasião se apresentasse, antes que as pessoas que tinham ido prender Sitiel e Caruarayco voltassem, porque depois disso seria mais difícil, pois eram muitos os que estavam com Manco. Assim, buscaram a oportunidade para executar sua intenção infeliz.


A Murúa (2) a tarefa de dizer como tudo aconteceu... 

"Certo dia jogavam boliche (3) Manco Ynga y Diego Méndez e, no jogo, Diego Méndez ganhou certa prata de Manco Ynga, que logo foi paga e, tendo jogado por algum tempo, disse que não queria jogar mais, que estava cansado, e mandou que trouxessem um lanche, e quando o trouxeram, Manco Inga disse a Diego Méndez e aos outros: vamos comer, e eles responderam que sim, e se sentaram com muita alegria, e comeram o que haviam trazido, ali, com o Ynga, o qual andava receoso dos espanhóis, porque os via andar cautelosos e portar armas, secretamente. Assim, teve um mal pressentimento de que lhe quisessem fazer alguma traição, pois estava com pouca companhia e, quando acabaram de comer, disse-lhes que fossem repousar, que ele queria se divertir com seus índios um pouco, e eles lhe disseram que logo iriam, e começaram os espanhóis a zombar uns dos outros, com palavras, brincando, para fazer Manco Ynga rir, porque ele gostava quando eles se divertiam. Com isso, foram se entretendo, por algum tempo, até que Manco Ynga, tendo bebido, levantou-se para dar bebida a seu guarda, porque é uso entre eles fazer essa honra a quem gostam muito e deu-lhe de beber. Estando parado, pois tinha lhe dado um copo para que bebesse, voltou-se para tomar outro copo, que segurava uma índia sua, atrás dele, para que Manco Ynga bebesse. Nisso, Diego Méndez, que estava alerta para aproveitar o momento que se lhe oferecesse, como o viu virar as costas para eles, arremeteu-se contra ele com grande fúria e, com uma adaga, deu-lhe uma punhalada por trás, e Manco Ynga caiu no chão, e logo Diego Méndez deu-lhe outras duas, e os índios que ali estavam, todos desarmados, perturbados pelo inesperado, lançaram-se para ajudar Manco Ynga e defendê-lo, para que não o ferissem mais, e os outros espanhóis pegaram suas espadas e se lançaram, também, para livrar Diego Méndez e, apressadamente, correram aos seus alojamentos e selaram seus cavalos, e pegaram seus utensílios, que ali mantinham, carregando tudo o que possuíam, como a pressa o permitiu, tomando o caminho de Cuzco, sem parar em parte alguma, e toda aquela noite caminharam, sem dormir, e como era montanha, não acertaram bem o caminho e andaram desorientados de uma parte a outra, perdidos,  e assim se detiveram."

Em seguida, enviaram mensagem aos capitães e a gente de Manco Inca, que tinham ido prender Caruarayco e Sitiel, dizendo-lhes que Diego Méndez e os outros espanhóis haviam apunhalado o Inca, fugindo para Cuzco; que deixassem tudo e voltassem para capturar os espanhóis antes que escapassem. Os que foram dizer isso toparam com eles no caminho, que já vinham voltando, trazendo prisioneiros, Caruarayco e Sitiel. Os capitães e os outros, de cento em cento, os mais valentes e ligeiros se adiantaram, velozmente, e chegaram até onde estava Manco Inca, mortalmente ferido, que ainda não estava morto, e como viram, assim, a seu senhor, com desejo de vingá-lo, deram a volta por onde sabiam que os espanhóis haviam seguido, e no outro dia os alcançaram. Eles haviam entrado em um grande galpão que existia no caminho e estavam descansando, pensando que estavam seguros e a salvo.
Os espanhóis estavam abrigados, mantendo consigo seus cavalos, lá dentro, e os homens de Manco, por não querer atacá-los logo, para que, com o dia, não escapasse nenhum, esconderam-se no monte até que fosse noite fechada. Juntando bastante lenha foram até o galpão e o cercaram e puseram a lenha nas portas para que não pudessem sair e, com palha, atearam fogo. Os espanhóis se levantaram com o barulho e alguns quiseram sair, irrompendo em meio ao fogo, mas foram alvejados e, ali, com seus cavalos, foram queimados. 
Então, os homens de Manco voltaram para Vitcos. 

Murúa conta que, quando soube que todos os espanhóis já estavam mortos, o Inca ficou muito satisfeito, e disse-lhes para não chorar por ele, para que as pessoas da terra não se inquietassem e fizessem um levante, e nomeou por herdeiro a um filho seu, o mais velho, ainda que pequeno, chamado Sayre Topa. E que, enquanto não tivesse idade para reger, os governasse Ato Supa, um capitão "orejón" do Cuzco que estava alí e que era homem de valor, de muita prudência e ânimo para a guerra. Disse-lhes que o obedecessem e que não desamparassem Vilcabamba, porque aquela terra a havia encontrado e fundado com tanto trabalho e suor, que para conquistá-la tantos haviam morrido, defendendo-a com valor.
Assim morreu Manco Inca Yupanqui, filho de Huayna  Capac, e embalsamaram seu corpo segundo seu costume, sem chorar nem dar mostras de tristeza, pelo que ele havia mandado, levando-o a Vilcabamba.

Nas palavras de Titu Cusi Yupanqui, filho de Manco Inca, que também quase foi morto naquele fatídico dia  de traição e morte...

"Depois de haver deixado de fazer guerra, estando quieto com a miséria que acontecia em Viticos, chegaram a deixar entrar sete homens que se encontraram com Gonzalo Pizarro contra o serviço do Rei, e tratava-os muito bem, obsequiando-os muito, e por ganância dessa miséria que no presente eu tenho, se amotinaram e fizeram conspiração, e o mataram traiçoeiramente, e, em mim, deram-me um golpe de lança, e se eu não me deixasse cair alguns penhascos abaixo, também teriam me matado, e depois tivemos paz por alguns dias, onde os índios de Tambo, Amaybamba e Guarocondo levaram de Viticos muitos índios, e por causa disso nós guerreamos com eles." (carta-memoria del Inca Titu Cusi Yupanqui, in Matienzo)

No testemunho de Titu Cusi Yupanqui Inca, filho de Manco Inca, 8 de julho de 1567. (5)

"E disse que pelos maus tratos que fizeram os cristãos a seu pai na época que chegaram à cidade de Cuzco os primeiros conquistadores, como foi Juan Pizarro, que prendeu a seu pai -- que era, então, obedecido como senhor temporal em toda a terra -- sob o pretexto que ele queria rebelar-se com todos os índios do reino, e pediu-lhe por resgate uma cabana* cheia de ouro e prata, e, sendo mentira, para redimir a humilhação, deu-lhe muitas cargas de ouro e prata, e com isso redimiu a humilhação. E então veio Gonzalo Pizarro por corregedor e o levou para a prisão que ele queria rebelar-se de novo, e pediu-lhe outra cabana cheia de ouro e prata e colocou-lhe uma corrente em torno de seu pescoço, e assim o levava pela cidade de Cusco diante de seus súditos, mulheres e filhos, com muitos insultos, e não tendo    [Mango Inga] o que dar para resgatar a humilhação, Hernando Pizarro chegou à cidade de Cuzco como corregedor e ordenou a libertação de seu pai, e depois de soltá-lo pedia-lhe um monte de ouro e prata, dizendo que era por tê-lo solto; e não tendo com que voltar a subornar ao dito Hernando Pizarro e temendo que o mandasse de volta para a cadeia e o molestasse, mandou chamar a todos os capitães e chefes do reino e depois de ter falado com eles se levantou contra o serviço de Sua Majestade na fortaleza de Cuzco, e cada um dos chefes em suas terras. E assim eles mataram muitos cristãos. "(Titu Cusi Yupanqui) (6)

A narração de Titu Cusi Yupanqui sobre tudo o que aconteceu com seu pai, Manco Inca, e com ele mesmo, naqueles fatídicos dias, nos quais os espanhóis "comiam ouro", é a nota triste, perpetuada pelas flautas, que contam, com os sons das montanhas, a tragédia dos Incas - aqueles que, de tão esquecidos, começam a ser considerados uma lenda. As palavras de Tito nos aproximam da verdade e da realidade de tudo o que aconteceu, e isso dói como as punhaladas no corpo do Inca. Não bastava a destruição, era necessário que o Sol fosse extinto.


"E em Pucará, em um alcance que lhe deram, tomaram uma irmã e esposa de seu pai, chamada Coya * Cura Ocllo, a qual levaram a Tambo e alí atiraram nela. E por isso lutou com os espanhóis e matou muitos deles. Depois, retirou-se para a província de Vilcabamba onde, agora, tem o seu lugar principal assento o citado Inca  Titu Cusi Yupanqui. E que, depois, estando ali seu pai retirado, vieram seis espanhóis fugindo do Peru por terem se levantado com Don Diego de Almagro contra o serviço de Sua Majestade, e tendo lhes feito um tratamento muito bom, trataram de matá-lo traiçoeiramente, e assim deram-lhe dezoito golpes com espadas e facões e facas e tesouras; e ao citado Inca Titu Cusi Yupanqui, sendo um menino, lhe deram um golpe de lança nas costelas, e se não se deixasse cair por uns penhascos abaixo, também seria morto. Assim, morreu seu pai dos ferimentos que lhe deram, e os capitães mataram os espanhóis como dito anteriormente, e que por esses agravantes rebelou -se seu pai contra a obediência e domínio real de Sua Majestade. "(Titu Cusi Yupanqui)

"Na época em que os cristãos entraram nessa terra foi preso meu pai, Mango Inca, sob pretexto e acusação de que queria levantar-se com o reino, após a morte de Atagualipa (7), apenas a fim de que lhes desse uma cabana cheia de ouro e prata. Em prisão lhe fizeram um monte de maus tratos, tanto físicos como em forma de palavras, colocando uma coleira  em seu pescoço, como a um cão, carregando-lhe, de ferro, os pés, e trazendo-o pela coleira de lá para cá, entre seus súditos, interrogando-o a cada hora, mantendo-o na prisão mais de um mês, de onde, pelos maus tratos que, a ele, seus filhos e gente e mulheres, faziam, libertou-se da prisão e veio para Tambo, onde fez confederação com todos os chefes e principais de sua terra ". (8)


"...Foi preso meu pai Mango Inga...
 ... colocando-lhe uma coleira no pescoço, como um cão, e carregando-lhe, de ferro, os pés, e trazendo-o pela coleira, pará lá e pará cá, entre seus súditos... "

1) Lima. 
(2) Fernando Montesinos, em Anales del Peru, conta uma outra versão da historia... 

"... No ano de 1542 como da batalha de Chupas saíram fugindo oito pessoas, e entraram nos Andes. Um deles era Diego Méndez, irmão do Mestre de Campo Rodrigo  Orgófies. Estes estiveram em companhia do Inga Mango em seu retiro até este momento. Havia mandado que fizessem umas argolas para que jogassem e entretinham-se com isso e a ensinar o Inga como (fazer) correr um cavalo e disparar um arcabúz. Como souberam que Gonzalo Pigarro ia contra o Vice-Rei escreveram a Antonio de Toro que conseguisse dele o perdão para sair de lá, e que o ajudariam no que fosse preciso. Respondeu-lhes, a Diego Mendez e Gomez Pérez, que matassem o Inca, que não só os perdoaria, mas que devolveria a Diego Méndez o Repartimiento de Asángaro que tinha antes. Pedia isso o Antonio de Toro, porque nos Andes tinha uma fazenda de coca que lhe dava cada mita mil pesos, eram três mitas e valiam mais de dez mil pesos por ano, e com a inquietação de Mango estava tudo suspenso e não se fazia nada, e pareceu-lhe que com a morte do Inga tudo voltaria a ser (como antes). Discutem o caso os oito soldados; pareceu-lhes bem a promessa; leram a carta diante de uma negra de Diego Méndez; esta avisou a um "orejón" com quem tratava, este, ao Inca, por três vezes, e não lhe deu crédito parecendo-lhe que a ingratidão não havia de vencer ao bom respeito e fiel amizade. Os castelhanos, vendo que em tanto tempo não havia esperança de que o Inga se convertesse e que a oportunidade de sair daquela solidão era boa, determinaram-se a matar o Inga. Armaram um jogo de argolas (4) na época em que havia enviado sua gente a campear e só ficaram com ele duzentos índios flecheiros dos Andes. Simularam uma diferença de qual argola estava mais perto; o Inga, como fizera outras vezes, aproximou-se do jogo, abaixou-se para medir as argolas; ao baixar-se, puxaram as adagas dos borzeguíns (#) e deram ao gentil muitas punhaladas. Foram depressa até os cavalos do Inga para ir embora, e fugiriam, se um deles, chamado Barba, não tivesse ido até uns jarros de ouro que tinha uma índia amiga do Inga: esta gritou, vendo o trágico acontecimento; acudiram os índios Andes e flecharam e mataram aos oito soldados, tiraram-lhes as cabeças, colocaram-nas junto ao Inga que ainda não havia expirado; em em três dias que viveu, nomeou por seu herdeiro no Império ao filho que tivesse sua mulher e irmã Inio CoUo, e se fosse menina, nomeava como Inga a Saire Topa, seu filho. " (Framentó Instórico. Capitulo 141,) 

3) "Bolos" se refere a um jogo que consiste em derrubar, por parte de cada jogador, o maior número possível de "bolos" ou "pinos" lançando uma bola ou peça, geralmente de madeira. 

(4) herrón (herrones) - Antigo jogo que consistia em enfiar, em um prego fincado no solo, uns discos de ferro com um furo no centro.

(5) O Inca, Titu Cusi Yupanqui, filho de Manco Inca, assinou em 26 de agosto de 1566 a "capitulação de Acobamba" tratado de paz que estipulou a "vassalagem" de Titu Cusi e instalação de um corregedor em Vilcabamba: Diego Rodriguez de Figueroa. Para apreciar ante o Rei da Espanha os direitos de sucessão de Titu Cusi Yupanqui e seus descendentes, Diego Rodriguez procedeu, em 08 de julho de 1567, a recolher "informação" com os testemunhos do Inca e alguns de seus dignitários e pessoas próximas.
(6) (CAPA INGA TITO CUXI YUPANGUI DOC. 52) 

(7) Atahualpa


(9) (Carta-Memoria del Inca Titu Cusi Yupanqui al Lic. Matienzo, junio de 1565).



BIBLIOGRAFIA

1) Fray Martín de Murúa, Historia General del Peru.
2) Fernando Montesinos, Anales del Peru.
3) Juan de Matienzo, Gobierno del Peru.
4) Juegos infantiles tradicionales en el Perú. Emilia Romero. Folklore Americano, Lima; Perú.

Para os textos originais em espanhol leia aqui mesmo, no blog:  http://princesinhadisol.blogspot.com.br/2011/07/manco-inca-juego-de-muerte-en.html



                                                   



2.22.2012

TELA DE AMOR E MORTE EM PUCARA (IMPÉRIO INCA)






Havia umas flores, nos Andes, chamadas panti (1) que, resistentes, semeavam a si mesmas, suas sementes germinando ao cair na terra. Crescíam bem, mesmo em solos pobres ou quando em áreas mais secas, florescendo a pleno sol, embora tolerassem as sombras. Resistentes a épocas mais áridas, às pragas ou doenças, suas flores atraíam pássaros e borboletas de todas as cores; cobrindo as planícies e as alturas com uma cor vermelho-sangue. Dizem que está extinta em seu ambiente natural mas, espero que possa renascer e, até mesmo, por algum milagre da natureza, nos guiar em meio à destruição de seu habitat, por entre as ruínas de um Império que eu já não sei mais onde buscar.

A planta herbácea, perene, atingia até sessenta centímetros de altura, suas folhas verdes, longas, compostas de folíolos, marcavam as flores que se produziam em um capítulo de cor vermelho escuro. O anel de flores exteriores, assimétricas, com aspecto de pétalas, formado por um simples círculo de flores, em geral oito, despertava uma fragrância suave de baunilha, especialmente no período da tarde e no quente verão. A floração era abundante, de junho a outubro, pelos caminhos, encostas e vertentes, mas quando cortaram as flores mortas, as extinguiram, como extinto foi o sangue Inca, ao ser derramado, cobrindo os Andes.

De acordo com o Testemunho do dia 8 de julho de 1567, do Inca Titu Cusi Yupanqui, quando os primeiros conquistadores chegaram à cidade de Cuzco, Juan Pizarro prendeu seu pai, Manco Inca, sob o pretexto que ele queria rebelar-se com todos os índios do reino e, por resgate, exigiu uma cabana cheia de ouro e prata. Mesmo sendo mentira, para redimir-se da humilhação, Manco Inca deu-lhe muitas cargas desses minerais.

Então veio Gonzalo Pizarro como corregedor e mandou-o para a prisão, sob o pretexto que ele queria se levantar de novo, e pediu outra cabana cheia de ouro e prata e colocou uma corrente em torno de seu pescoço, e levou-o por toda a cidade de Cuzco diante de seus súditos, esposas e filhos, com muita ignomínia. E quando  Manco Inca não tinha mais nada para redimir-se da humilhação, chegou à cidade de Cuzco Hernando Pizarro como corregedor e ordenou que ele fosse solto e depois de soltá-lo, pedia-lhe muito ouro e prata dizendo que era porque o havia libertado. Não tendo com que subornar Hernando Pizarro e temendo que o mandassem de novo para a prisão e o perturbassem, chamou a todos os capitães e chefes do reino e levantou-se contra o domínio espanhol na fortaleza de Cuzco; cada um dos chefes, em suas terras, rebelaram-se com ele. E, assim, mataram muitos cristãos. E, em Pucara, quando o alcançaram, lhe tomaram a uma irmã e mulher chamada Coya Cura Ocllo, e a levaram a Tambo e, alí, atiraram nela. Manco Inca, então, com maior revolta, lutou com os espanhóis e matou muitos deles.

Pucara (2), que significa "fortaleza vermelha", agora é apenas uma ruína Inca, perto da estrada que vai de Cusco ao Antisuyo (selva amazônica).
Pucara, que está muito perto de Tambomachay, outra ruína na área, era um posto de controle militar - o complexo dispõe de armazéns, casas, fontes e aquedutos.
A "Fortaleza Vermelha", com seus muros de cor avermelhada, tomou este nome a partir da cor das pedras, especialmente ao entardecer quando, sob as luzes do crepúsculo, a rocha é muito vermelha.

Hoje, as ruínas conservam os restos do que um dia foram torres de vigilância e muralhas, características de um sítio militar com praças, escadarias e aquedutos. A proximidade de Tambomachay também é importante porque, ao que parece, em tempos ainda mais antigos, o governante Inca costumava visitar, regularmente, os banhos de Tambomachay, toda vez que seu exército e funcionários se alojavam em Pucara.
A nove quilômetros da cidade de Cuzco, facilmente acessível, o trajeto que, de automóvel, dura de quinze a vinte minutos em média, também pode ser feito a pé em umas duas horas. Hoje não é considerado um lugar muito importante, não é encontrado em muitos mapas da região, por isso poucas pessoas chegam a visitá-lo.


Voltando um pouco atrás no tempo...


Como em uma pintura a óleo sobre tela, as ruínas parecem, ainda, brilhar ao sol de um passado distante, quando Manco Inca ansiava por liberdade, tentando, desesperadamente, retomar o caminho da história até as tardes tranquilas de sua infância. Imagino seus olhos cheios de lágrimas represadas, como tempestade que ameaça sem cair, pensando em sua esposa morta, tentando olhar, apenas, para as planícies e encostas vermelhas de "Panti Pampa"(3).

Consideremos o que acontecia, naquela época, nas palavras de Murúa. Antes e depois da batalha de Salinas, os índios que estavam em Cuzco e em seus arredores, não faziam idéia de onde estava Manco Inca. Desse modo, iriam reconhecer Paulo Topa como filho de Huayna Capac, o que significava colocá-lo como Inca (Paulo não era filho da esposa principal de Huayna Capac como seria necessário para ser alçado como Inca). Os espanhóis vizinhos e os "encomenderos"(*) deles, querendo evitar incovenientes que poderiam acontecer caso eles se acostumassem com ele, e para que Paulo Topa não se sentisse cheio de soberba, ordenaram que ninguém deveria ir à sua casa, apenas seus servos. Assim, a partir de então, os índios não se dirigiam mais à casa dele, nem o reverenciavam, pelo que, finalmente, entenderam os espanhóis que, desta forma, tirariam dele a oportunidade de se rebelar, como seu irmão."

Esta era a situação em Cuzco, enquanto nas montanhas...

"Manco Ynga, naquele momento, não descansava, antes andava causando muitos males e roubos, destruindo tudo o que podia, e como as novas chegassem aos espanhóis, querendo acabar de uma vez com o que inquietava a terra, saíram de onde estavam e lutaram bravamente, matando muitos índios, e o desbarataram e feriram até a província de Vitcos, em Vilcabamba, e foram atrás dele até lá. "


"Paulo Topa os seguiu,

e um dia o tiveram tão apertado que lhe tomaram o andor que o levava e a tiana - que é o assento onde se sentava-, e ele escapou nas montanhas, onde se escondeu com muitos índios, e outros, que não puderam segui-lo, não tiveram vontade de andar, já cansados, vieram a Cuzco, e dalí cada um foi para suas terras, e os espanhóis, como viram que Manco Inca tinha escapado de suas mãos, voltaram para Cuzco, e Manco Ynga se foi à sua Guamanga com o povo que restara, e lá praticava todos os males que podia. "


Jimenez de la Espada descreve a "Guamanga de Manco Inca" em seu livro, Relaciones Geograficas de Indias, como "terra cheia de curvas e cavernas: nas alturas é terra fria, nua, seca e estéril; embaixo, onde há rios e córregos de água ,é terra temperada e fértil; alí, dá qualquer coisa... "

Segundo o autor, os rios e riachos desciam das montanhas nevadas e desertas e íam profundos e resistentes, estreitando vales.


Ele a descreve quando o Inca já não vivia mais. Na época, todos ocupavam as terras desde as alturas ao chão, em terra mais fria do que quente. Nas alturas e encostas, por causa das chuvas, tiravam proveito dos dois extremos: da terra fria, para apascentar o gado doméstico, aqueles que os tinham e, também, caçar; e, da quente, para as lavouras. No tempo dos espanhóis, "todas as casas eram pequenas e humildes e, a maioria, redondas, suprindo com arte a pobreza e necessidade de roupa."

Três ofícios ​​ainda eram usados: oleiros, carpinteiros, e ourives. No entanto, como eles não conseguiam sustentar-se com seu trabalho, apenas nas cidades, onde ganhavam vendendo para os espanhóis, poucos foram aqueles que ficaram, só os que tinham algum gado remanescente da época dos Incas; estes eram os mais remediados e o principal modo de vida dos montanheses era o trabalho no campo.

"O caminho real que chamam de Guainacaba (3), que parte de Quito, pelas montanhas para ir a Cuzco e Charcas, divide os povoados dessa província, entrando pela praça da cidade. Os índios que vivem do lado esquerdo, que é para o Andes, alcançam boas terras. Têm chácaras de coca, algodão e pimenta, pelos quais pagam tributo, e obtêm seus pagos e benefícios. Aqueles que vivem do lado direito, entre o caminho real e a cordilheira, que é nas planícies, não têm tais terras, mas têm despovoados e algumas cabeças de gado e caça, dos quais se sustentam, vestem e fazem carne seca, chamada charque, e disso obtêm seus pagos e contratos com os outros. As chácaras de coca que agora têm os índios, eram todas do Inga e nenhum chefe ou índio as tinha; e da que agora colhem trezentos e quatrocentos cestos, naquele tempo não colhiam dez, daí se conclui que no tempo dos espanhóis se multiplicou, tornando-se tão comum aos índios."(*)

Pois bem, quanto a Manco Inca...


"Vendo que não parava, trataram de enviar outra vez para prendê-lo, e entrou Gonzalo Pizarro, e Villacastín,e o capitão Orgono e o capitão Oñate e Joan Balsa, e morreram treze espanhóis e mataram seis cavalos, ainda que tenham matado muitos parentes de Manco Inga e principais pessoas que estavam com ele. Foi Villacastín, um capitão, com grande número de soldados espanhóis, também levou consigo um grande número de índios, cujos capitães eram Inquill e Huaipar. Manco Inga, reunindo todo mundo que pôde, chegou de repente sobre os índios e matou a todos, prendeu Huaipar, que teve nas mãos. Inquill, fugindo, ao escapar, despencou-se ".


Assim começa a desenhar-se nossa tragédia, de amor e dor, que o destino traçou no meio da guerra, acrescentando cor, quando a terra já estava coberta de sangue, vermelho, carmim, como as flores de "panti" que se derramavam pelas encostas.

"... E houve batalha com os espanhóis em Xauxa, onde morreram muitos, e também na batalha de Yucay, onde morreram mais de 400 espanhóis, em seguida, em Pucara, onde houve a batalha com Gonzalo Pizarro, onde morrer Guaypar e Inguill, filhos de Guayna Capa, e não restou outro filho, apenas Paullo, ... "(Titu Cusi Yupanqui, carta)

Manco Inca necessitava, naquele momento, demonstrar sua força diante de seus homens. E ele o fez.

"Para fazer com que os outros o temessem, mandou matar a Huaipar diante de sua irmã, que era esposa de Manco Inca,...

... dando-se, depois, batalha, Villacastín desbaratou a Manco Inca com os espanhóis e prendeu a esposa de Manco Ynga. Eles a tiveram nas mãos porque ela ficou para trás na retirada,

com raiva, e se recusou a acompanhar o marido, porque ele havia morto diante dela a seu irmão Huaipar. "

"Como dissemos, Villacastín e Gonzalo Pizarro a levaram a Tambo, onde o Marquês Pizarro, que tinha tornado a subir desde Lima, e estava lá, com uma estranha crueldade, indigna de usar-se com uma mulher que não tinha culpa daquelas revoltas e rebeliões de seu marido, mandou atirarem nela e em outros capitães de Manco Inca.
À morte de sua esposa, tão triste e desesperada, chorou e fez grande sentimento por ela, porque a amava muito e, com isso, foi se retirando até o assento de Vilcabamba."


Frei Martin de Murua me permitiu encontrar o campo de cosmos que tanto busquei para ilustrar essa história de amor. Quando eu já havia perdido a esperança.

Então, o tempo havia avançado um pouco, alguns poucos anos, na época do último Inca, Tupac Amaru, mas, como podemos ver, o sofrimento e a dor pareciam não ter fim.

"No dia seguinte levantou-se o acampamento e em boa ordem marcharam duas léguas até Huayna Pucara, onde os inimigos estavam reforçados, e fizeram resenha em um lugar chamado Panti Pampa, e alí o campo espanhol parou, para tratar de como investiriam contra o forte e prevenir o que fosse necessário para o assalto, que se esperava ser muito difícil e perigoso... e se estabeleceu o acampamento da melhor maneira possível. Os inimigos estavam à vista e até mesmo quase no campo, à medida em que eles se aproximavam . "

"O Capitão Puma Ynga, em nome dos Incas Tupa Amaro e Quispi Tito, deu obediência ao general Martin Hurtado de Arbieto, dizendo que o Incas pediam paz...

... E que eles não haviam tido qualquer culpa na morte de Atilano de Anaya, nem tinham mandado tal coisa, porque estavam lá dentro, apenas Curi Pauca, e os outros capitães orejones de sua autoridade, haviam feito, para que ninguém soubesse da morte de Tito Cusi Yupanqui, seu irmão e pai. "

"Esse Puma Ynga deu notícia de como os capitães haviam feito um forte e o mantinham muito equipado e fortificado, chamado Huayna Pucara, e traçou o modo de como se poderia ganhar sem que os espanhóis e índios corressem perigo no assalto e captura dele. Nesse momento andavam os inimigos à vista do acampamento, e aos olhos dos espanhóis, com grande desenvoltura, aparecendo às vezes como a desprezar os nossos. "

"Assim, através de seus avisos claramente se conhece que houve a vitória e tomada do forte, porque ele disse que era um lugar muito longo, de uma légua e meia, quase chegando a duas e, de distância, como meia-lua o caminho por onde se tinha de marchar, muito estreito, muito rochoso e de montanha, e um rio largo e caudaloso, correndo pela vereda do caminho, pois tudo era de muito perigo e temeridade, indo e lutando contra os inimigos que estariam nas alturas, nessa distância de légua e meia, nas alturas que fazem meia lâmina fragosa, que não se pode andar ou passar dois companheiros juntos, aos pares. Os índios tinham feito um forte de pedra e lama, muito amplo, onde estava a fortaleza com muitos montes de pedra para atirar com a mão e com fundas e sobre o forte, por toda a lâmina, estavam montes de grandes pedras (#) e em cima ou por trás dos montes, pedras muito grandes, com suas alavancas,... "


Por entre pedras e flores, chegava-se ao Qhapac Ñan, a Estrada Real, que conduzia a toda parte. Sobre os rios, pontes suspensas que se gastaram como laços quebrados na memória. Como já disse Murúa, naquele lugar havia tanta quantidade de pedras que "parece ser realmente uma cidade ou castelo de muitas torres, de onde se julga que os índios deram-lhe um bom nome. Entre esses penhascos altos ou penhas existe uma rocha, junto a um pequeno rio, tão grande quanto admirável de se ver, considerando a espessura e a grandeza. Eu a vi, e dormi uma noite nela e me parece que terá de altura mais de duzentos côvados e, no contorno, mais de duzentos passos no topo dela. Se estivesse em uma fronteira perigosa, facilmente poder-se-ía fazer essa fortaleza que seria considerada inexpugnável. E  tem outra coisa que notar nessa  enorme rocha, que, em seu contorno, tão côncavo, podem ficar sob ela mais de cem homens e alguns cavalos. "


Pucara, a Fortaleza Vermelha, como fortes traços de tinta aplicada em uma tela branca que, perdendo a cor original, torna-se sangue, como as flores de cosmos, em Panti Pampa, talvez extintas, talvez à espera de um renascimento.
Na Catedral da cidade de Puno, construída no século XVIII, no antigo Supay Cancha (cerco do diabo), cuja fachada foi esculpida pelo mestre pedreiro peruano Simón de Asto, na qual podemos ver uma mostra do Barroco espanhol, incluindo elementos andinos que conferem ao monumento o seu carácter mestiço, tal como na fachada as flores nativas de panti (1). A obra foi concluída em 25 de maio de 1757.


(*) Adendo: pode-se perceber o momento exato em que a coca começou a se tornar uma "necessidade".

(**) (encomederos) - encomienda - Instituição da América colonial, mediante a qual se concedia a um colonizador um grupo de índios para que trabalhassem para ele em troca de sua proteção e de evangelização.

(#) pedregonazo (palavra usada por Murúa) que eu traduzi usando o sufixo da Língua  Espanhola: azo, -aza
1   Sufijo que entra en la formación de palabras con valor aumentativo y, frecuentemente, matices especiales de cariño o menosprecio: cochazo, manaza, padrazo, cabronazo. (sufixo que entra na formação de palavras com valor aumentativo e, frequentemente,com especiais nuanças de afeto ou desprezo)
2   Sufijo que entra en la formación de palabras con el significado de 'golpe': bastonazo, codazo, portazo. (sufixo que entra na formação das palavras com o significado de golpe)


(1) Cosmos é um gênero, com o mesmo nome comum de Cosmos, de cerca de 20-26 espécies de plantas anuais e perenes da família Asteraceae.



(2) Puca Pucara.

(3) Campo de Panti (cosmos)

(4) Huayna Capac.


(4) No livro El Mundo Vegetal de los Antíguos Peruanos de Eugenio Yacovleff e Fortunato L. Herrera temos:
color encarnada

86. PANTI; ID.  Holguín Cosmos peucedanifolius var tiraquensis (Kunth) Scharff (Fam. Compositae) PANTI Planta herbácea, anual, de folhas muito divididas, flores de cor vermelha. Cresce no desfiladeiro de Apurimac. Cultiváveis como planta ornamental, suas flores são usados ​​como um sudorífico. Nas festas de carnaval, que substituíram as que celebravam entre os incas para incentivar a procriação das llamas, os índios usam as flores de panti em forma de mistura para atrair prosperidade. O povoado de Pantipata, que significa "uns andenes e, neles, flores vermelhas." (GIR 207, II).

“Panti-flor vermelha, símbolo de ternura” (Holguín)

--Outros estudos feitos com Panti: Especímes examinados: Sra. A. F. Bandelier 18, alt. 12,500 feet(pés), Titicaca, Lago Titicaca, Bolivia, 1905 (N. Y.; nomen incolarum; aymaranarum, Panti-Panti); CL Gay, Departmento de Cuzco, Peru, October, 1839-February, 1840 (Par. tipo de Cosmos subpubescens Wedd.) F. L. Herrera, alt. 3,000-3,600 metros, Cuzco, Peru, July, 1923 (U. S.); idem 1025, alt. 3,700 metros, Hacienda Churu, Provincia de Paucartambo, Departmento de Cuzco, Peru, enero (e pittacio lectoris ipsius), 1926 (Field; Gray, 2 sheets; Mo.; N. Y.; U. S.; nom. vulgare, Panti) em lugares não cultivardos, terrenos com matas(arbustos), etc, perto de Sorata, nos terrenos de mato  por toda parte, perto de Sorata, janeiro-marçoo de 1859 (Del.; Gray; N. Y.) A. Mathews, Provincia de Chachapoyas, al norte del Peru (Gray, 2 folhas; material tipo de C. marginatus Klatt); A. Weberbauer 6S81, Peru, 1909-1914 (Field); idem 7597, alt. 3,600 metros, na estepe de gramíneas com arbustos de dispersão, Valle de Yanahuajra, Provincia de Huanta, Departmeno de Ayacucho, Peru,18 de marzo de 1926 (Field).
Weddell’s C. subpubescens se baseou em uma planta de Gay fde a Província de Cuzco, Peru.



BIBLIOGRAFIA


(En el testemonio del Inca Titu Cusi Yupanqui, hijo de Manco Inca, 8 de julio de 1567, in Matienzo).
(Carta-Memoria del Inca Titu Cusi Yupanqui al Lic. Matienzo, junio de 1565, in Matienzo).


--Juan de Matienzo, Gobierno del Peru.


--Fray Martín de Murúa, Historia General del Peru.--Juan de Matienzo, Gobierno del Peru.
--Jimenez de la Espada, Relaciones Geograficas de Indias.


você pode ver o texto original desta postagem, em espanhol, bem como todos os textos dos autores, aqui traduzidos, no seguinte link, aqui no blog:
http://princesinhadiseda.blogspot.com/2011/07/manco-ii-lienzo-de-amor-y-muerte-en.html











2.21.2012

COMO PUMAS ENTRELAÇADOS NAS SANDÁLIAS DE HUASCAR (IMPÉRIO INCA)



                                




Agora, em nosso regresso de quinhentos anos no tempo, ao Tahuantinsuyo, vamos ao palácio para encontrar o Inca ... O último Inca... Huascar.

O Palácio Real do Inca, chamado Cuusmanco, tem duas portas magníficas, uma na entrada e uma mais interior, e sua obra é toda em cantaria bem lavrada.
Na primeira porta, há dois mil soldados de Guarda com o seu capitão. Estes soldados são privilegiados e isentos de serviços pessoais, os capitães, que os comandam, são pessoas importantes, de grande autoridade (1).

Depois dessa primeira porta existe uma praça, na qual podem entrar os que vem de fora, acompanhando o Inca, detendo-se, ali quando ele entra com os quatro orelhões de seu conselho, atravessando a segunda porta, na qual existe uma outra guarda, esta composta, apenas, de pessoas naturais da cidade de Cuzco (2). Para além dessa porta, um outro grande pátio, destinado aos oficiais do Palácio e os que tem ofícios regulares dentro dele, que ficam aguardando ordens, em razão de seu ofício.
Junto a essa segunda porta, onde está a armaria (3), com todos os tipos de armas, ficam cem capitães, dos melhores na guerra, exercitados nela, os quais são mantidos prontos para qualquer ocasião que se apresente.

Em seguida, as salas, recâmaras e aposentos, onde o Inca vive, cheio de alegria e contentamento, com sua esposa, com saída para os jardins onde há árvores com todos os tipos de aves e pássaros cantando; pumas, onças e outros gatos selvagens e todos os tipos de feras e animais encontrados no Tahuantinsuyo. Os quartos, amplos e espaçosos, lavrados com maravilhoso artifício porque, como não há cortinas ou tapeçarias, as paredes são esculpidas com ricos trabalhos, decoradas com muito ouro e estampas das imagens e feitos dos ancestrais; as clarabóias e janelas são guarnecidas com ouro e prata e pedras preciosas.


Há no palácio uma câmara do tesouro, a Capac Marca Huasi (4), onde são guardadas as jóias e pedras preciosas do senhor. Nesse aposento estão todas as ricas vestes do Inca, de finíssimo Cumbi (5), e todas as coisas relativas ao adorno de sua pessoa - não apenas as suas jóias de preço inestimável, como peças de ouro e prata do serviço usado nos aparadores do palácio. Com cinquenta camareiros encarregados e  um contador-chefe para liderá-los, uma espécie de inspetor para vistoriar, minuciosamente, cada detalhe do serviço; ou seja, um tucuiricuc ou cuipucamayoc.
Ele é encarregado das chaves de algumas portas (6), mas não pode abri-las sem estar na presença de seus  companheiros que, por sua vez, têm suas próprias chaves.

Existem vinte e cinco roupeiros, de doze a quinze anos,  filhos dos curacas (chefes) e pessoas importantes, muito bem tratados e ricamente vestidos, que cuidam das roupas do Inca, preparando-as e separando-as de acordo com as cores ordenadas. Eles também levam os pratos à mesa quando ele se alimenta.


                                                                ****



O Inca atravessara os umbrais do aposento com um ar imponente e orgulhoso no semblante. Como outros Incas, ele tem estatura media, pele levemente bronzeada; o cabelo, um pouco mais curto do que outros, no reino, que os mantém mais compridos. Não tem barba (7), é sério, circunspecto, mas também tranquilo e discreto. E, como, em geral, todos os Incas, se expressa muito bem. (8)

Vestido costumeiramente com uma camisa de Cumbi azul, maravilhosamente elaborada com um trabalho de Tocapo (9), com tons sutis de verde e roxo. A manta, a yacolla, do mesmo Cumbi, mas sem qualquer trabalho, descansa nos braços de um roupeiro, que aguarda, pronto para vesti-la nele, se assim desejar o senhor.


Na cabeça, ele traz o llaitu (10), com as cores do arco-íris, as mesmas do Tahuantinsuyo, incrustrado de pedras preciosas e, pendendo do llaitu,  o vermelho vivo do  Cumbi finíssimo da borla imperial, a mascapaicha - a insígnia real e coroa, com os seus fios de ouro e as sagradas penas do qoriqenqe.
Calçado com sandálias que cobrem as solas dos pés e se enlaçam no meio do pé com as argolas pelo calcanhar e onde os laços são travados coloca-se algumas cabeças de puma, feitas de ouro e pedras de esmeralda, ricamente trabalhadas.
Neste momento, o copeiro, o ancosanaymaci, um dos orelhões mais importantes do império, aproxima-se, carregando um copo feito de madeira preciosa, talvez cheio de chicha, talvez de água, para servir ao supremo Inca do Tahuantinsuyo.

O último Inca... Huascar... que permanece em silêncio, observando a luz do sol que vem dos jardins...



 
                                      (Fray Martín de Murúa: Historia general del Perú)



                                                                      



                                                                         ################




(1) Quando o Inca ia à Serra, iam junto com sua pessoa, e recebiam rações regulares e avantajados pagamentos, e  andavam, geralmente, acompanhados pelos filhos dos curacas e pessoas importantes, muito lucidamente adereçados. (Murtua)

(2) orelhões e parentes, descendentes do Inca, em quem ele confiava, e eram aqueles encarregados de criar e ensinar os meninos, filhos dos governadores e pessoas importantes de todo o Reino para que trabalhassem no serviço do Inca, assistindo-o na corte.
3) a saber flechas, arcos, lanças, macanas, champis, espadas, capacetes, fundas, escudos pesados, tudo arranjado em perfeita ordem e disposição.

4) literalmente - aposento rico do tesouro - tinha esse  tesoureiro ou contador-mor, um grande salário e muito proveito, porque o Inca lhe dava muitas roupas das suas próprias, gado e chácaras, e dessas doações ele ficava com duas partes e uma era para seus companheiros.

(5) Cumbi - tecido finamente elaborado com lã de vicunha.

(6) portas de madeira.

(7) os incas não tinham qualquer tipo de barba, porque se alguma surgisse, com pinças, chamadas tiranas, as arrancavam. (Murúa)

(8) Eu descrevi Huascar de acordo com as características dos Incas descritas por Frei Murúa em seu livro. Porém, gostaria de fazer uma ressalva, chamando a atenção para o fato de que os Incas de sangue puro, naquela época, já estavam extintos, ou praticamente extintos, pois os que não foram mortos pelos exércitos de Atahualpa (que era só meio Inca, apenas por parte de pai e é preciso lembrar que, para ser Inca, era preciso ter sangue puro), foram dizimados pelos espanhóis, mortos por doenças e, os que restaram, misturaram o sangue, ou com os próprios espanhóis, ou com os Incas de privilégio, que não eram Incas de sangue, ou com os povos circundantes, que serviam aos Incas. Alguns autores afirmam, o que eu mesma sou levada a concordar, que os Incas eram brancos; alguns dizem 'bem brancos'. 

(9) As ñustas (Virgens do Templo do Sol), que fiavam de modo extremamente delicado para tecer as roupas do Inca e esculpiam neles maravilhosos labores de tocapo, que eles dizem que significa diversidade de trabalhos, com mil matizes de grande delicadeza, às vezes de cor roxa, às vezes verde, às vezes azul, outras vezes vermelho vivo.
Tocapu ou tocapo: pequenas figuras de grande padrão com certos desenhos repetidos, com os quais adornavam as vestes mais luxuosas. Trajes típicos do Peru e mantas, muitas vezes contêm esses símbolos abstratos e geométricos que se encontram discretamente dentro de um quadro retangular ou quadrado. Na roupa, cada tocapu poderia ser colocado em um padrão linear ao longo da cintura ou sobre uma grade que cobre toda a superfície. Eram prerrogativa dos membros do clã imperial Inca e dos indivíduos da elite, acredita-se ter sido um privilégio das pessoas que utilizavam estas peças de vestuário e que eles controlavam uma variedade de etnias no Império (Rebecca Arte em pedra de Miller. Dos Andes Chavin de Inca, Nova York. Thames and Hudson, 1995, p. 210).

(10) O llauto era uma espécie de turbante com as cores do Tahuantinsuyo (Império Inca), tecido com lã de vicunha, que dava de cinco a seis voltas na cabeça e sustentava na frente uma  borla de lã, chamada mascapaicha que, juntamente com penas do qoriqenqe (ave sagrada cujo símbolo levava na parte da frente) e topayauri (uma espécie de cetro) constituíam as vestes particulares do Sapa Inca.

  BIBLIOGRAFIA 
  
Fray Martín de Murúa: Historia general del Perú. Origen y descendencia de los Incas (1611). 
  
e para o tocapo: 
  
Rebecca Stone-Miller. Arte de los Andes de Chavín de Inca, Nueva York. Thames and Hudson, 1995, p. 210).