8.11.2021

FILHOS DO SOL

 






CAPÍTULO V




Depois de quase perdermos a vida naquele mar de lama, tivemos um amanhecer sereno. A princípio imaginei o pior mas, aos poucos a névoa começou a dissipar-se e um sol tímido a nos aquecer e dar alento à esperança que se afigura moribunda. A manhã já vai perdendo-se, a luz do sol descortina um tesouro diante de nós, onde parece haver quase uma trilha à nossa frente, formada por colinas de grama que oscilam ao vento estendendo seu cobertor de finos fios de ouro que as últimas chuvas não conseguiram minimamente tingir de verde que, pelo contrário, parece ter concentrado seus tons mais escuros na linha das árvores distantes, esbanjando cor como preciosas pedras verdes de vários tons, como jade, esmeralda, quartzo, cristal, amazonita, enquanto o sol faz brilhar nas folhas os últimos resquícios de névoa. O barulho do rio, no piso inferior, correndo paralelo à nossa caminhada, deixando escorrer seus diamantes de brilhos na superfície ligeira da água, contrariado pela urgência de pássaros que passam aos bandos sobre nós, diante de nós, quase nos atropelando, às vezes solitários, briguentos, solidários, beija-flores como joias pairando no ar e borboletas silentes, menos agitadas que eles, pontilhando de cor nosso deslumbre, estando nossos olhos ofuscados pelo excesso de luz. A montanha pulsa e a vida respira como um ser que apenas desperta.

Em 1807, durante uma expedição a essa mesma Cordilheira de Llanganates na qual nos encontramos, agora, à procura do mesmo tesouro que buscamos, Don Atanasio Guzmán, naturalista espanhol, encontraria a morte. Embora tenha esboçado um mapa detalhado do ouro dos Incas não teve tempo para reivindicar o ouro, tendo desaparecido em circunstâncias inexplicáveis. Envolto na possibilidade de uma maldição, o tesouro foi, então, deixado intocado até 1860. Agora, uma cópia da cópia da cópia da cópia do mapa que Guzmán desenhara pode ser vista fazendo turismo em nossas mãos, de mão em mão.


De repente, um dos homens de Fernandez lança-se ao chão, de joelhos, enquanto grita palavras em sua língua nativa. Fernandez e os outros acorrem e alguns o imitam, chafurdando os joelhos nos restos de lama. Olhamos todos para a direção apontada por seus braços sujos de barro e a visão é mesmo de dar medo, parecendo sobrenatural demais depois de tudo o que passamos. Ao longe, algo que se assemelha ao Cerro Hermoso, parece projetar-se contra um sol quase irreal que vai iluminando toda a distância fazendo-o brilhar como ouro contra o horizonte. Ficamos atônitos, os mapas jazendo em nossas mãos, inúteis e sem significado.

--Aquilo é ouro! - grita Henri, enquanto segura meu braço com força excessiva, causando um desconforto extra.

O que parece ter sido um local onde eram realizadas cerimônias de adoração pelos nativos, Cerro Hermoso, com mais de quatro mil metros acima do nível do mar, é considerado uma das montanhas mais bonitas do Equador. O nome parece ter-se originado a partir de sua aparência surpreendente, quase fantasmagórica, no momento em que seus picos são iluminados pelo sol da tarde.

--Não é o Cerro Hermoso.

--Como você sabe, Fernandez?

--Se fosse o Cerro, estaríamos dentro do rio Millín, agora.









3.08.2021

O DIA EM QUE O FILHO DO SOL AFRONTOU SEU PAI.

 







"O Rei então disse:" Bem, eu lhe digo que este Nosso Pai, o Sol, deve ter outro senhor maior e mais poderoso do que ele. O qual lhe ordena fazer esse caminho que ele faz sem parar todos os dias, porque se ele fosse o Senhor Supremo, uma vez ou outra deixaria de andar, e descansaria para seu prazer, mesmo que não precisasse"." (Garcilaso)



Tendo despedido o seu exército, depois de lhe ordenar que regressasse dos limites setentrionais, Huayna Capac regressou a Cuzco, chegando a tempo de celebrar a principal solenidade do Sol, o Inti Raymi.

Segundo Garcilaso de la Vega, os Incas diziam que em um dos nove dias de duração da solenidade, Huayna Capac, seu Inca, foi contra a proibição que tinham de olhar para o Sol e colocou os olhos nele, de onde ele o permite e ficou assim olhando para ele.

O sumo sacerdote, um de seus tios, perguntou por que ele fazia o que não era lícito.

O Inca, então, baixou os olhos e, erguendo-os novamente com liberdade, voltou a colocá-los no Sol. O Sumo Sacerdote disse-lhe que além de ser proibido de olhar livremente para o Pai, ele dava um mau exemplo a todas as pessoas da corte e do Império que ali estavam para celebrar a veneração e adoração do Pai Sol. Então Huayna Capac disse que queria fazer-lhe duas perguntas para responder ao que ele havia dito.


"Haveria algum de vocês tão ousado a ponto de, para seu prazer, me dizer para levantar da minha cadeira e andar um longo caminho?" O sacerdote respondeu: "Quem teria sido tão desatinado assim?" O Inca respondeu: "E haveria algum curaca dos meus vassalos, por mais rico e poderoso que fosse, que não me obedecesse se eu mandasse que ele fosse pelo correio daqui para o Chile?" O sacerdote disse: "Não, Inca, não haveria ninguém que não obedecesse a tudo o que você mandasse até a morte."
Huayna Capac então disse a ele: "Pois eu te digo que este Nosso Pai, o Sol, deve ter outro senhor maior e mais poderoso do que ele, o qual ordena que ele faça  esse caminho que cada dia faz sem parar, porque se fosse o Senhor Supremo, uma vez ou outra deixaria de andar e descansaria para seu prazer, mesmo que não tivesse necessidade alguma"." (Garcilaso)


"...tomaram por mal prognóstico a novidade que seu rei havia feito ao olhar o Sol com aquela liberdade. Huayna Cápac a tomou por causa do que ouviu seu pai Tupac Inca Yupanqui dizer sobre o Sol, que é quase o mesmo, segundo referiu-se em sua vida." (Garcilaso)

Garcilaso de la Vega, em seu livro Comentarios Reales, afirma que o padre Blas Valera fala deste Inca, Tupac Inca Yupanqui, pai de Huayna Capac, o que segue, literalmente, de seu latim no romance: “Tópac Inca Yupanqui disse:“ Muitos dizem que o Sol vive e que é o criador de todas as coisas; é conveniente àquele que faz algo apoiar ao que faz, mas muitas coisas são feitas quando o Sol está ausente; portanto, ele não é o criador todas as coisas; e que ele não vive, conclui-se que sempre andando por aí não se cansa: se fosse um ser vivo se cansaria como nós, ou se fosse livre visitaria outras partes do céu, onde nunca chega. É como uma rês amarrada, que sempre faz um mesmo cerco; ou é como a flecha que vai para onde a mandam e não para onde ela gostaria. "

Tupac Inca Yupanqui foi o pai de Huayna Capac. Assim, vemos que a fé havia sido abalada em seus alicerces, com tremores e terremotos, muito antes, e que Huayna Capac já havia entrado em contato com seu lado racional, que já o distanciava de sua fé em Deus e em si mesmo.

Ocorreu em Cuzco um portento e um mau presságio que preocupou muito Huayna Capac e assustou a todos no Tahuantinsuyo. Celebrando-se o Inti Raymi, a adoração solene que a cada ano eles faziam ao seu Deus Sol, eles viram chegar pelo ar uma águia real, chamada anca, que era perseguida por cinco ou seis falcões (1) e outros tantos falcões, que eles chamam de huaman os quais , mudando uns e outros, caíam sobre a águia, não a deixando voar, mas golpeando-a até a morte. Incapaz de defender-se, ela deixou-se cair no meio da praça principal da cidade de Cuzco, entre os Incas, para que a ajudassem. Eles a pegaram e viram que estava doente, como se tivesse sarna, quase sem penas menores.
Eles a alimentaram e cuidaram dela, mas em poucos dias ela morreu, incapaz de se levantar do chão. O Inca e seu povo tomaram isso como um mau presságio, em cuja interpretação disseram muitas coisas os adivinhos que para tais casos eles haviam escolhido; e todas eram ameaças de perda e destruição de seu Império. Além disso, houve grandes terremotos e tremores de terra, muito maiores do que os habituais e que causaram a queda de muitas colinas. O mar, com suas marés, saiu do normal muitas vezes; viram muitos cometas assustadores aparecerem. Entre esses temores e assombros,  viram que em uma noite muito clara e serena a Lua tinha três halos muito grandes: o primeiro era vermelho como sangue; o segundo, mais para fora, de uma cor negra que puxava ao verde e o terceiro parecia de fumaça. Um adivinho ou mágico, que chamam llayca, tendo visto e contemplado os halos que a Lua possuía, entrou onde estava Huayna Cápac, com um semblante muito triste, quase chorando, quase sem poder falar, contou-lhe que sua mãe a Lua avisava que Pachacámac, criador e sustentador do mundo, ameaça a seu sangue real e a seu Império com grandes pragas que haveria de enviar sobre os seus.
Que aquele primeiro halo cor de sangue significava que depois que ele morresse, haveria uma guerra cruel entre seus descendentes e muito sangue real derramado, de modo que em alguns anos tudo se acabaria. O segundo cerco negro nos ameaça que das guerras e mortes dos seus se causaria a destruição da religião e a alienação do Império. Disse que tudo se converteria em fumaça, como significava o terceiro halo, que parecia fumaça. "O Inca sentiu, mas para não demonstrar fraqueza, disse ao mago que eram zombarias que ele havia sonhado e não revelações de sua mãe, a Lua. Então ele lhe disse para sair e ver ...


"O Inca saiu de seu aposento e, vendo os sinais, mandou chamar todos os magos que havia em sua corte, e um deles, que era da nação Yauyu, a quem os outros reconhecíam vantajoso, que também havia olhado e considerando os halos, disse-lhe o mesmo que o primeiro. Huayna Capac, para que o seu povo não perdesse o ânimo com tão tristes prognósticos, embora fosse conforme com o que tinha no peito, deu mostras de não acreditar e disse aos seus adivinhos: "Se o próprio Pachacámac não me disser, não vou dar crédito às vossas afirmações, porque não é de se imaginar que o Sol, meu pai, odeie tanto o seu próprio sangue que permita a total destruição de seus filhos"." (Garcilaso)


Com isso, ele dispensou os adivinhos.
Huayna Capac com medo e tristeza; sempre esteve prevenido de um exército bem escolhido, da gente mais veterana e prática que havia nas guarnições daquelas províncias. Ele ordenou que muitos sacrifícios fossem feitos ao Sol; e que os profetas e feiticeiros, cada um em sua província, consultassem seus oráculos.
De todos os lados, trouxeram-lhe respostas sombrias e confusas, que nem deixavam de prometer algo de bom nem deixavam de ameaçar. Quase todos os feiticeiros davam maus presságios.
Todo o Tahuantinsuyo estava temeroso de alguma grande adversidade; mas como nos primeiros três ou quatro anos não houvesse nada, voltaram ao seu antigo sossego, e nele viveram alguns anos, até a morte de Huayna Capac.

“A lista das previsões que dissemos, além da fama comum que existe delas em todo aquele Império, foi dada em particular por dois capitães da guarda de Huayna Cápac, cada um com mais de oitenta anos; ambos foram batizados; o mais velho se chamou Don Juan Pechuta; tomou por sobrenome o nome que tinha antes do batismo, como em geral fizeram todos os índios; o outro se chamava Chauca Rimachi; o nome cristão apagou da memória o esquecimento. Esses capitães, quando contavam essas previsões e os acontecimentos daquela época, desmanchavam-se em lágrimas, que era preciso distraí-los da conversa, para que parassem de chorar; ... ”(Garcilaso)


Quando Huayna Capac se sentiu mal e, como nos dias seguintes tenha se sentido cada vez pior, sabia que sua doença era mortal, pois desde anos atrás ele tinha predições dela, tiradas da feitiçaria, presságios e interpretações que há muito tempo tiveram daquelas previsões, principalmente aquelas que falavam de sua pessoa, que os Incas diziam serem revelações de seu pai, o Sol, para dar autoridade e crédito à sua idolatria.



Cometas terríveis apareceram no ar e, entre eles, um muito grande, de cor verde, muito assustador, assim como um raio que atingiu sua casa, e outros sinais prodigiosos que escandalizaram enormemente os amautas, que eram os sábios, e os feiticeiros e sacerdotes, que previram não apenas a morte de seu Inca Huayna Cápac, mas também a destruição de seu sangue real e a perda do Tahuantinsuyo. Disseram que todos eles em geral e cada um em particular sofreriam muitos males, mas não se atreveram a dizer às pessoas para que não morressem de medo.
Não posso deixar de mencionar e acrescentar a isso o fato, muito mais grave, de Huayna Capac ter se casado com uma estrangeira, o que, para o Sol, era uma afronta direta e um pecado. Para piorar as coisas, ele deu poder a Atahualpa, o filho que teve com a estrangeira, permitindo que seus sentimentos fossem mais importantes do que o Tahuantinsuyo e seu Deus Sol. Huayna Capac, infelizmente, a exemplo do próprio pai, Tupac Inca Yupanqui, ousou tomar decisões que não poderia, por ser o filho do Sol que era. 



(1) cernícalo s. m. Ave de rapina com cerca de 40 cm de comprimento, cabeça protuberante, plumagem avermelhada com manchas pretas e bico e unhas fortes



BIBLIOGRAFIA

Garcilaso de la Vega, Comentarios Reales.







2.26.2021

FILHOS DO SOL - IV







CAPÍTULO IV


Segundo os ecologistas, toda vegetação alta, tropical e montanhosa, acima da linha contínua das árvores, mas abaixo da linha de neve permanente, é um bioma neotropical de alta montanha com uma vegetação composta principalmente por plantas rosetas gigantes, arbustos e gramíneas e é designada com o nome de páramo.

Nós passamos a maior parte do dia lidando com o barro grudento que nos tornava cansados demais, desanimados quando ficávamos atolados com lama acima dos joelhos e, mesmo assim, tínhamos de avançar. O esforço físico é tanto que inúmeras vezes precisamos de horas para nos reorganizar e descansar dos embates com a natureza. A exaustão me induz a pensamentos de derrota e conclusões infundadas de que o guia de Valverde não passa de uma farsa e uma brincadeira sem fundamento que tem durado devido a imensa quantidade de tolos dispostos a encarar tal empreitada em um lugar tão inóspito, capaz de trazer desgraça e morte e, de quebra, reforçar a ideia de que tudo acontece pela maldição aportada pelo tesouro àqueles que o buscam. Mas, o mapa está tatuado em minha mente e as instruções de Valverde soam como música e têm refrão. Estou ansioso por ver as estrelas, novamente. A vida inteira elas tem sido a inspiração para as minhas decisões e solução para as minhas dúvidas. No entanto, as chuvas constantes e intermináveis nos tem colocado em uma espécie de outro mundo, fora da realidade, ou da normalidade. Minhas noites tem sido escuras, geladas e vazias e alguns pesadelos não me deixam descansar a ponto de eu começar a pensar que posso adoecer e morrer e ser enterrado na lama do Llanganatis, com uma pequena cruz de madeira improvisada para lembrar da minha breve existência e de que a minha persistência me conduzira até este lugar.

Enquanto a lama me envolve e o som dos homens tenta nos conduzir para fora do pesadelo com gritos e advertências, eu sonho com a minha primeira vez aqui, quando a minha rebeldia me fazia desejar não seguir as orientações dadas aos turistas e eu me esforçava para fazer o meu melhor nesse sentido, usando roupas e calçados confortáveis, ao mesmo tempo quentes e impermeáveis, como se isso fosse mesmo me proteger do sol e da chuva, com uma porção de barrinhas de cereais e água mineral na mochila, uma garrafa térmica de café e outra de chocolate quente, tentando seguir as instruções do guia e me sentindo ridículo por fazê-lo. Atrasando os outros com minhas escapadas e constantes paradas para observar a beleza das plantas endêmicas e aquelas tão pequenas que ninguém nem sequer nota; atrapalhando aqueles cuja única intenção era aventurar-se a pé para além dos locais comuns de visita, aqueles sonhadores que ousavam ir um pouquinho além para ter a sensação de estar adentrando a verdadeira atração do Llanganatis, o romance, a aventura a magia de Atahualpa Inca e seu tesouro. Como se o sonho de todos nós não esbarrasse contra o paredão chamado Rumiñaui, o general do "olho de pedra", aquele que tudo vê, aquele que tudo vigia, aquele que, de dentro da morte, vela por seu Inca, seu irmão, seu amigo, e seus interesses reais; afinal nada parece ter mudado no mundo espiritual dos Incas e essa dimensão do espírito se encontra com o mundo físico bem aqui, justamente aqui, no Llanganatis. 

A camada de nevoeiro fora persistente, antes do aguaceiro, e as nuvens baixavam ao nível das árvores, encobrindo a vegetação, reduzindo a exposição à luz solar direta, quando o sol ousava brilhar e a abundância de epífetos resultava em farta cobertura de musgos e fetos e uma variedade de plantas com flor e muitas orquídeas. O solo, com forte tendência à umidade, por vezes tornando-se alagado, conferindo às turfeiras  uma rica variedade biológica, um mundo à parte no qual a precipitação que provém do nevoeiro alimenta a floresta nublada, aspergindo as gotículas que o compõem por toda a vegetação e, posteriormente, juntando-se, aumentando de tamanho e escorrendo para o solo.

Meu pensamento parece voar na névoa como se eu sonhasse acordado, sentindo-me em conformidade com a adesão das gotículas que se formam no nevoeiro, aderindo às folhas das árvores, aos troncos, sobre os quais se unem de maneira intensa em gota maiores que escorrem sobre essas superfícies até alcançar o chão. Como se a minha alma pudesse transcender a adversidade e eu me tornasse parte da natureza, em uma outra dimensão, fora da chuva intensa, fora da lama destrutiva. Parece que estou adentrando o espírito do Llanganatis, precipitando-me com as gotículas do nevoeiro capturadas pelas folhas, pelos ramos, em constante movimento, pelo soprar dos ventos, juntando-se umas às outras, tornando-se mais pesadas, precipitando-se como gotas de tinta transparente deixando entrever a cor do objeto que atinge em sua precipitação. O movimento continuo das folhas, dos ramos, no agitar dos ventos, como instrumentos de coalescência.

Mas, a realidade ainda é a chuva constante e a lama pesada. Lembro-me do que Loch escreveu em seu livro: "Tudo em que pisamos, tudo em que agarramos cedeu sob nós." Loch (1), que na primeira expedição enfrentara a chuva em trinta e sete dos trinta e nove dias de duração, terminara a segunda tão mortificado "setenta dias de inferno que fez toda a miséria anterior parecer nada" que, logo após a publicação do seu  livro contando sua experiência, teria tirado sua própria vida.  

A mente de um homem é terreno acidentado; é como uma floresta de nuvens que cresce densamente nas encostas onde vales parecem não levar a lugar algum. Difícil julgar o que faz um explorador atingir seu extremo, seu limite, sua fronteira final e irreversível. Acho que meu único medo é defrontar-me com meu limite, não tendo a certeza de superar minhas fraquezas e perecer como Loch, perdendo para ele mesmo, seu pior adversário.

A certa altura, escorregamos para fora do caos escalando toras que emergem da lama, passamos parte do tempo nos arrastando sobre pedras irregulares, quando, finalmente, rolamos para dentro de um arroio no qual encontramos um certo conforto, apesar da água gelada, livrando-nos, aos poucos, do barro que nos cobria, lavando nossas feridas, felizes por superar tanta adversidade de forma satisfatória.

Todos, indistintamente, temos as mãos cortadas e os braços arranhados sob roupas meio esfarrapadas mas não há tempo para lamentações. Nossos espertos carregadores improvisam, céleres, um acampamento enquanto o vento muda rapidamente as nuvens de lugar e algumas estrelas podem ser vistas, acrescentando insumos às nossas esperanças de que a chuva faça parte do passado.

Fernandez, o chefe dos carregadores nos serve uma caneca de um chá escaldante que meu paladar não consegue identificar. Meus olhos estão colados na face de Henri, fortemente rosadas enquanto duas olheiras fundas emolduram seus olhos cansados. Estou preocupado com seu aspecto doente e uma tosse persistente que ele tenta disfarçar sem resultado. Não consigo esquecer que Isabela Books morreu de pneumonia após três dias neste lugar.

--Termine seu chá e vá para dentro da barraca. Chega de ventos gelados, garoa e chuva por hoje. Agasalhe-se bem e tome pelo menos uma aspirina.

--Já tomei. Não se preocupe. Está tudo sob controle.

--Ótimo. E não se preocupe se ouvir barulho do lado de fora da barraca. São os ursos de óculos te chamando prá briga.

Ele sorri de volta quando eu tento animá-lo com uma piada.


As taxas de crescimento de duas espécies de roseta caulescente, Coespeletia timotensis e Espeletia Schultzii, foram avaliadas em um páramo andino perto de seus limites de elevação superiores. A altura do caule e da copa foram medidas no início e no final dos períodos de estudo, e as diferenças na estatura da planta foram divididas pelo número de anos para obter as taxas de crescimento anual. Como forma, "roseta" é usada para descrever plantas que crescem perpetuamente como uma roseta (da mesma forma o estágio imaturo de plantas como alguns fetos). Cada povoamento mostrou um aspecto, grau de variação, posição de declive e cobertura de solo bem uniformes, ainda que seu desenvolvimento possa ter sido afetado pelas diferenças de microsítio, como nutrientes de solo e o teor de umidade, a proximidade das rochas e as interações por competição das plantas.

A mortalidade foi semelhante para ambas as espécies, sendo maior para mudas de C. timotensis e plantas mais altas, que se inclinaram e tombaram, provavelmente devido ao distúrbio de geada no solo. Também houve mortalidade nas plantas maiores de E. Schultzii, mas elas permaneceram de pé e não tombaram. 

De repente. o céu mostrou-se pontilhado de estrelas e eu fiquei maravilhado. Depois, quase no mesmo instante,  um bólido, qual estrela cadente, veio rompendo a atmosfera, queimando na ação de seu movimento, desintegrando-se na direção das montanhas distantes, tombando morto na escuridão.









2.19.2021

FILHOS DO SOL

                                                               





                                                          Capítulo III



Eu estava observando as cores nas pétalas das orquídeas e os intensos tons de verde de suas folhas em um pequeno aglomerado de arbustos isolados na beira da encosta, ao mesmo tempo tentando me livrar de irritantes mosquitos que iam e vinham sem dar trégua, quando senti meu pé deslizar na lama encharcada sob o mato fofo, o movimento do meu corpo forçando alguns galhos contra meu rosto como garras de um animal selvagem. Escorreguei até ficar de joelhos quando o meu pé, simplesmente, resvalou para o vazio e eu tive de me agarrar aos mesmos galhos que me feriam para não rolar no despenhadeiro. Pude ouvir os homens gritando na distância e só então percebi que a névoa cobrira tudo repentinamente. Eu estava só e teria de me virar para me safar do perigo, as mãos agarradas aos galhos, os pés calcados no emaranhando da ramagem dependurada na vertente. 

 Os segundos pareceram horas enquanto eu tentava me acalmar, consciente de que um gesto precipitado me lançaria no vazio dentro da morte. A névoa parecia compacta demais e eu mal podia ver a mim mesmo quando senti alguém agarrar-me pelo pulso enquanto outra mão puxava-me pelo cano da bota e eu encontrei forças para impulsionar meu corpo para cima e para a vida, sentindo a respiração ofegante do meu salvador contra o meu rosto quando nós dois rolamos juntos sobre a vegetação, cortando mãos e pulsos na grama afiada do páramo. 

A névoa pareceu desvanecer um pouco e eu pude ver a silhueta magra de Henri tentando se aprumar contra o recorte esfumado da montanha. Felizmente havíamos colocado os casacos e as botas de cano longo, ou poderíamos ter nos ferido ainda mais. Rimos enquanto tentávamos nos perceber dentro da névoa fugidia.

--Obrigado, amigo! - minha voz pareceu trêmula demais e eu tossi tentando me recompor.

Henri ficou em silêncio e eu me senti muito tolo dentro da loucura dessa circunstância. Soltei o corpo sobre a grama, apoiando-me nos cotovelos, tentando, ao mesmo tempo, relaxar e evitar o contado da minha cabeça com a relva cortante. Um cansaço extremo forçou-me contra o chão e eu fiquei deitado de costas olhando um rasgo de azul suave enquanto a relva se dissipava na direção da montanha. De repente o azul pálido de seus olhos me puxaram de volta, atraindo-me como o feitiço do ouro de Atahualpa. 

Henri estava de pé tentando equilibrar-se enquanto tirava o casaco e eu pude ver sua camiseta branca rasgada e manchada de sangue, assustando-me com a ferida que sangrava perto de seu coração.

--Você está ferido.

--Não é nada.

Levantei-me rápido, o mais rápido que pude, quando nossas faces ficaram muito próximas e iluminadas pelos primeiros raios de sol que víamos em dois dias.

--Não se preocupe. Não é nada. -estávamos muito próximos quando nos vimos cercados pelos outros.

--Todos bem? Estão todos bem?- alguém perguntou e todos começaram a falar ao mesmo tempo, cada um com uma conversa diferente, uns em espanhol, outros em inglês, ninguém fazendo questão de entender o outro. Não houve nenhum constrangimento, apenas arranhões e a ferida no peito de Henri. Logo estaríamos sentados em círculo, tentando fazer uma refeição descente, ouvindo estórias e histórias da boca dos carregadores.

Um bando de antas correu para o mato quando nos aproximamos do acampamento e das mulas, parecendo mais amigos do que, realmente, éramos; todos sorridentes e estropiados, famintos e extenuados. Era nosso segundo dia no Llanganatis.






FILHOS DO SOL







CAPÍTULO II



Antes de nos encontrarmos ao pé dos três cerros, nos encontramos no apartamento de Henri na cidade de Londres. Passamos a noite, e parte da manhã, acordados, conversando sobre o tesouro de Llanganatis.

Tentei argumentar com Henri sobre o que já houve, no passado de Llanganatis, com aqueles que ousaram sonhar com esse tesouro que poderia não passar de uma fata morgana nos sonhos de tolos. Tentei demovê-lo, mais como uma estratégia furada de sentir-me um pouco mais em paz quanto a minha vontade de ir para lá sozinho, com a única pretensão de adquirir conhecimento, como uma espécie de Darwin dos tempos atuais. Minha pretensão morria no esboço de seus sorrisos e eu pensei que qualquer um poderia, facilmente, apaixonar-se por ele, duvidando que alguém tivesse a coragem de confessar diante desse ser especial que ele era, frente a sua terrível capacidade de nos colocar, a todos, cada um de nós, em seu devido lugar.

--E quanto a Brun, George Brun, o especialista em balística, picado por um escorpião? Foi na segunda expedição de Loch. A primeira havia durado trinta e nove dias, trinta e sete de chuvas torrenciais. Mas, a segunda...
--A insistência dos exploradores equivale a de nós, botânicos.
--Eu sei que somos loucos, mas quem não é? Só os pálidos de medo não ousam tentar transformar seus sonhos em realidade.
--Nem todos são loucos, Henri. Nem todos são covardes. Essa é uma definição muito simplista da alma humana.
--Infelizmente, ou felizmente, não sei, a segunda viagem de Loch ao Llanganatis foi a mais cansativa, setenta dias no inferno. Se tudo fosse a contento não estaríamos aqui, agora, e, provavelmente o tesouro estaria em um museu e nos encontraríamos apenas para tomar cerveja e reclamar de nossas esposas megeras e nossos filhos birrentos.
Eu ri muito enquanto o observava tão sério.
--Ah, não, não faríamos nada disso. No máximo uma namorada e iríamos para o Egito em busca de achados arqueológicos.
--Você não entende. Isso é mais sério do que parece. Eu preciso fazer isso. Algo me atrai para aquele lugar. Encontrar o ouro é só uma motivação que eu tento manter preservada. Porque eu não sei o que me move de verdade. É uma coisa de alma.
--Quando foi que isso aconteceu? Quando começou a sentir isso?
--O próprio Loch escorregou em uma ravina, quebrando duas costelas e um de seus soldados foi arrastado para dentro das corredeiras para nunca mais ser visto. Loch, dois soldados e Brun sobreviveram. Por quanto tempo alguém sobrevive depois de ter seus sonhos destruídos e o corpo moído pelas adversidades? Loch ainda viveu para publicar seu livro. Precisava fazer isso. Então, tirou a própria vida. Sozinho em seu mundo gigantesco. O cara era um gigante e agora não passa de uma lenda esquecida. Não quero que aconteça isso comigo. Mas, se acontecer, pelo menos terei morrido pela melhor causa.
--Talvez seja melhor não falarmos mais sobre isso. Vamos esquecer os caras. Estão mortos mesmo.
--Loch escreveu em seu livro: "Tudo em que pisamos, tudo em que agarramos cedeu sob nós." Falava sobre o que aconteceu nessa expedição mas, eu vejo além disso. O que aconteceu estava escrito em sua alma, tudo ruiu dentro dele até não haver mais nada. Escrever aquele livro era tudo o que lhe restava. "Savage and barbarous land of false dreams and broken promises.", ele disse.
--"Terra selvagem e bárbara de sonhos falsos e promessas quebradas."  Vamos nos manter racionais, nós dois.
--Antes dele, o Coronel Brooks e sua esposa Isabella viveram uma tragédia lá que  se derramou para fora como o espumar de um louco. Em sua primeira viagem sofreu um motim. eu posso imaginar o que terá acontecido. Mas, não foi o bastante. Ele voltou levando sua amada esposa. Ele a amava tanto. Eu posso imaginar o que ele estava sentindo.
--Parece que ela não era sua esposa.
--Mas, ele a amava. Aquelas chuvas torrenciais de sempre não deram trégua. De nove a doze meses de chuvas e névoas geladas. Ela adoeceu em plena montanha, bem no meio do nada. Em poucos dias ela morreu. Talvez ele devesse ter morrido junto. Resolveu voltar a Nova Iorque e foi parar num hospício.
--Isso tudo parece gerar muita superstição sobre o lugar, sobre o tesouro.
--Parece que todos, de uma forma ou de outra, são atingidos no coração. Bob Holt, literalmente.
--O geólogo americano.
--Década de sessenta. Não faz tanto tempo assim. Escorregou e caiu sobre um tronco de árvore quebrado e pontiagudo que o acertou diretamente no coração.
--São coinci...
--...dências. Não. Tem algo aí. Algo grande, enorme; e forte, muito forte. Como um polvo gigantesco e seus tentáculos que nos puxam de volta para a morte. E ele sempre vence.
--Você não acha que o tesouro está amaldiçoado!? 
--Não. Nem tudo é para todos. Está lá por um motivo. Está esperando por aquele que deve encontrá-lo.
Eu estou sorrindo ao olhá-lo no olhos.
--E você sabe quem é essa pessoa?
--Eu tenho o direito de ter um palpite.





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2.16.2021

FILHOS DO SOL





 CAPÍTULO I


Parei, mais uma vez, para olhar o mapa. Obviamente, as coisas mudaram, pode ser que a paisagem tenha sido alterada de forma significativa porque a vegetação está em contínuo crescimento transformando a flora local. Não se descarta a possibilidade de que raios, nas tempestades, talvez possam causar incêndios, mudando o bioma das florestas, ou dos páramos, mesmo que, depois de algum tempo, tudo pareça natural e preservado. O local do tesouro de Atahualpa pode ter sido perdido para sempre como resultado dos terremotos que ocorrem regularmente nas montanhas densamente arborizadas. 

Encontrar o ouro do resgate de Atahualpa seria a menor de minhas preocupações; na verdade, eu não quero encontrá-lo. A prioridade sempre foi descobrir novas espécies botânicas e a fantástica oportunidade de ter em mãos uma variedade de plantas que eu jamais sonharia encontrar no permanente habitat de concreto da minha cidade. Com o mapa diante de mim e um suspiro, olho para os companheiros de exploração e o cansaço nos olhos deles me faz despertar para o verdadeiro propósito da missão. Minhas prioridades não são relevantes pois, depois de tê-los arrastado para isso com o objetivo de encontrar o tal tesouro, o objeto de nossa concentração deve ser a localização do ponto exato de onde se tem a última, ou única, notícia do ouro; a todo custo, a toda pressa, porque parece que, aqui, o tempo passa mais rápido, as distâncias se alargam e vamos nos tornando mais fracos, nossos itens de sobrevivência diminuem consideravelmente, e ainda teremos de voltar, sãos e salvos, pelo mesmo caminho.

O guia, o Derrotero de Valverde, começa assim...

¨Situados en el pueblo de Píllaro, preguntad por la hacienda de la Moya y dormir la primera noche a buena distancia sobre ella y preguntad allí por la montaña de Guapa... ¨ 

Pillaro é uma cidade um pouco menor que Ambato e fica em terreno mais alto, no lado oposto do rio Patate, apenas um poucos quilômetros de distância, embora a jornada até lá seja muito prolongada por ser necessário passar a quebrada profunda do Patate, o que ocupa uma hora inteira. A fazenda de Moya ainda existe; e o Cerro de Guapa é claramente visível a leste-nordeste de onde estou escrevendo. 

"...desde cuya cima, mirando al Este y teniendo Ambato a la espalda, podréis divisar los tres Cerros Llanganati en la forma de un triángulo, en cuyos declives hay un lago, hecho por la mano del hombre, dentro del cual los antiguos arrojaron el oro que ellos habían preparado para el rescate del Inca cuando ellos supieron de su muerte. "

Eu ia dizer alguma coisa quando olhei e vi Henri aproximando-se de nós com seu chapéu de explorador que o faz parecer mais alto ainda, sorrindo meio sem graça, balançando ligeiramente a cabeça como quem pede desculpas, abrindo os braços para um cumprimento amistoso e sincero. 

Deveríamos ter nos encontrado em Pillaro mas, como sempre Henri se atrasou. Sem perda de tempo, tirou o guia da minha mão e começou a murmurar enquanto olhava para as montanhas.

-- Os três Llanganatis vistos do topo do Guapa são supostamente os picos Margasitas, Zunchu e o Volcan del Topo. 

Então, voltou-se para cumprimentar, um por um, todos homens, exploradores, ou carregadores, tratando a todos com o mesmo entusiasmo de sempre, o que o faz amado por onde quer que vá. Olhei o rosto dos homens e o cansaço pareceu haver desaparecido. Sorri, incrédulo, me sentindo, eu mesmo, um pouco cheio de energia. Com um sotaque inglês um pouco carregado, Henri leu uma parte do que estava escrito:

"Desde el mismo cerro Guapa también podrás ver la selva, y en ella un manchón de sangurimas que sobresalen de la dicha selva, y otro manchón que llaman flechas, y esos manchones son la marca principal por la cual te guiará, dejándolos un poquito a mano izquierda."

--Não vamos cometer o mesmo erro de Spruce. Já sabemos com certeza que as sangurimas não são Cecropia ou algo relacionado. Vamos em busca de um aglomerado de Espeletia, da família das Asteraceae.

Eu argumento que não podemos ter certeza disso, já que ninguém tem feito progressos nas tentativas de encontrar o lugar do tesouro.

Vejo-o caminhar até mim, retirando o chapéu e entrelaçando os finos cabelos loiros entre os dedos, onde uma discreta tatuagem se firma como parte de seus mistérios.

--Meu amigo, para encontrar algo que procuramos fora, precisamos antes encontrá-lo dentro de nós. Está lá em algum lugar e estamos bem perto. Eu sei porque está dentro de mim. Você é meu amigo, mas eu não viria aqui porque você é meu amigo. Estou aqui porque sou parte de tudo isso. Está tatuado dentro de mim, dentro do meu coração, da minha alma.

Abriu um pouco os braços e girou ao redor de si mesmo.

--Eu sei que está aqui. É como se eu mesmo o tivesse colocado lá.


                                                                   

                                                                   *****


Estou escrevendo em forma de livro. Espero que gostem e voltem para acompanhar o desenrolar da história. 

Esta é uma história de ficção baseada em fatos reais e os personagens foram criados por mim, podendo, ou não, ter qualquer semelhança com personagens reais ou históricos. Meu intuito é dar minha humilde contribuição para manter viva a memória do Império Inca. Obrigada e volte para ler o Capítulo II.




2.05.2021

A MANCHA CONSPÍCUA DE SANGURIMAS NO LLANGANATES COMO DESCRITO NO DERROTERO DE VALVERDE

 













          A mancha conspícua de sangurimas que salta à vista e chama a atenção.

¨As "Sangurimas" na floresta são descritas para mim como árvores com folhagem branca; mas eu não consigo descobrir se elas são uma espécie de Cecropia ou de algum gênero relacionado. As "Flechas" são provavelmente a gigantesca cana-de-flecha, Gynerium saccharoides, cuja haste floral é o habitual material para flechas de índio. ¨                                                                                                                      Richard Spruce

O botânico escocês Richard Spruce, viajou pela América do Sul, a partir da costa  atlântica brasileira até a costa do Pacífico do Equador, de 1849 a 1864.  Foi o primeiro etnobotânico da América do Sul (1), descrevendo pela primeira vez as plantas usadas por várias tribos amazônicas, como as espécies alucinógenas usadas pelos xamãs e as espécies tóxicas usadas como ingredientes em venenos. Registrou o vocabulário de 21 línguas indígenas amazônicas, descobrindo um grande número de novas espécies de plantas, incluindo 400 espécies de briófitas como musgos e hepáticas, que eram sua especialidade. Mas, na verdade, as sangurimas são Espeletia, um gênero botânico pertencente à família Asteraceae. 

Espeletia, comumente conhecida como 'frailejones' ("grandes monges"), é um gênero de subarbustos perenes, da família do girassol. O gênero foi descrito formalmente pela primeira vez em 1808 e batizado em homenagem ao vice-rei de Nova Granada, José Manuel de Ezpeleta.

As plantas da Espeletia grandiflora vivem em grandes altitudes no ecossistema dos páramos. O tronco é espesso, com folhas suculentas e peludas dispostas em denso padrão espiral e as folhas murchas ajudam a proteger as plantas do frio. As flores são semelhantes às margaridas, geralmente amarelas.

A Espeletia é bem conhecida por contribuir para o mundo na sustentabilidade da água, ao capturar o vapor de água das nuvens que passam em seu tronco esponjoso,  liberando-o através das raízes no solo, ajudando a criar vastos depósitos de água subterrânea de alta altitude e lagos que eventualmente formarão rios. 

 

(1)  Etnobotânica é um ramo da Botânica que estuda o papel tradicional de certas plantas na vida e folclore de determinada raça ou povo.








1.29.2021

O TESOURO ESCONDIDO DE LLANGANATIS

 

                                                Llanganatis / Equador



Vamos a um passeio que vai começar neste momento, voltando atrás quinhentos anos para tentar surpreender o passado.

Sob uma temperatura polar insuportável, entrando em uma horrível  tempestade que geralmente leva a inundações terríveis, acompanhadas de ruídos estranhos, vamos penetrando em uma misteriosa vegetação onde o musgo é tão grande que pode afundar um ser humano e cobrir a extensão de um abismo.
 
Cerro Hermoso é a cordilheira central de Llanganatis, que não é exatamente uma cordilheira, mas um raro sistema de três montanhas agrupadas, encravadas nesta parte do beco interandino e que vão como ramificações nos Andes equatorianos. Muito poucas pessoas conhecem o local de Llanganatis e daqueles que entraram, apenas alguns saíram vivos. Mas todos concordam que é uma espécie de oásis geológico no mundo andino.
 
Os Andes não estão parados, mas vivem em perpétuo movimento geológico. As estradas,  traçadas por montanhas e vales, movem-se.

As tubulações hidráulicas, feitas de concreto, se retorcem e rompem-se, a neve derrete, de vez em quando, dando origem a novos e imensos riachos aluviais. Todo o sistema andino é um promontório rochoso quebrado, a cicatriz de uma grande ruptura da crosta, de onde emergiram grandes buracos vulcânicos. Um aglomerado em torno dos escombros desse quebrado formou a enorme Cordilheira. Raramente existem rochas sólidas nos Andes, todas estão rachadas, queimadas ou esmagadas.
 
As colinas e picos vulcânicos da Cordilheira dos Andes são formados de cima para baixo. Os Llanganatis, no entanto, são de baixo para cima. Eles são únicos.
Sempre que se fala em Llanganatis ele está envolto  em uma névoa muito densa ou tempestades que parecem catástrofes. Como um grande mistério, um mistério para muitos dos que entraram e não saíram de lá. 
 
Píllaro é o ponto de partida para Llanganatis e não há outra entrada.
 Llanganatis é um lugar ideal para esconder algo e um esconderijo pode ser uma tumba permanente, uma tumba insondável onde o que ali caiu dificilmente pode ser extraído. Um abismo de mistérios e segredos eternos.
 Teria sido ali, enterrado por Rumiñahui, uma parte do resgate em ouro de Atahualpa, bem como seu próprio corpo desaparecido?
 Depois de entrar em Llanganatis, estamos nos lançando no abismo do tempo, para tentar entender a história e a lenda. No caso dos Incas, posso dizer que a lenda é a história.
Como lenda, a tradição oral e escrita fala de um tesouro. O fabuloso tesouro que o exército levava para Cajamarca e que, provavelmente, foi escondido em Llanganatis, algum tempo depois, em lugares que apenas Rumiñahui e alguns de seus homens conheciam.
Decididamente, em Llanganatis, Rumiñahui, que era descendente do Atis de Pillaro, de Pillahuaso deve ter escondido todas as riquezas que se dispôs a entregar para libertar seu soberano, quando este foi assassinado pelo opressor.

Geograficamente, Llanganatis está fixada no triângulo formado por Latacunga, Baños e Puyo, onde a Cordilheira Ocidental ligou-se para produzir uma terceira montanha, limitando com o Amazonas desde a bacia do Napo e Pastaza.
 
Do final do século XVIII até a década de 1970 do século XX, cerca de cinquenta expedições foram feitas a Llanganatis, mais de trinta delas lideradas por estrangeiros.
A mais documentada delas foi realizada pelo pesquisador de Quito Luciano Andrade Marín, em 1933 e 1934, que junto com dois italianos, Humberto Re e Tullio Boschetti, caminharam um mês e meio pela região de Llanganatis.

El Derrotero Del Padre Valverde.

A verdadeira história desse guia (El Derrotero) perde-se nas brumas do tempo e das conquistas coloniais. O original estaria nos Arquivos Indianos e exigiria muita pesquisa para encontrar e determinar a autenticidade.
Aparentemente, há uma cópia impressa ou outra, daí a impossibilidade de determinar a autenticidade desta forma, mas em qualquer caso, trata-se de algo antigo e fascinante.
 
"Situados no povoado de Píllaro, perguntai pela Hacienda (fazenda) de la Moya e dormi a primeira noite a boa distância acima dela e perguntai ali pela montanha de Guapa(Cerro Hermoso?)... de cujo topo, olhando para o leste e tendo Ambato nas costas, podereis ver as três colinas Llanganati em forma de triângulo, em cujas encostas há um lago, feito pela mão do homem, no qual os antigos jogaram o ouro que haviam preparado para o resgate do Inca quando souberam de sua morte. Do mesmo morro Guapa também poderás ver a selva, e nela um aglomerado de sangurimas que se projetam da dita selva, e outro aglomerado que chamam flechas, e esses aglomerados são a principal marca pela qual vos guiareis, deixando-os um pouquinho para a esquerda, segui em frente desde Guapa na direção e de acordo com as indicações, e depois de terdes avançado uma boa distância, e tendo passado por algumas fazendas de gado, encontrareis a beira de um amplo pântano o qual tereis que atravessar e, saindo do outro lado, vereis à esquerda um pequeno caminho fora de um canavial sobre uma encosta, por onde devereis passar. Ao sair do canavial, vereis duas pequenas lagoas chamadas Los Anteojos (Os óculos), porque entre elas há uma ponta de terra como um nariz.

Deste lugar podeis divisar outra vez as colinas de Llanganatis, da mesma forma que as vistes do alto de Guapa, e eu vos aviso que deixeis as ditas lagoas à esquerda, e que na frente da ponta ou nariz há uma planície, que é o lugar para passar a noite. Lá deveis deixar vossos cavalos porque eles não podem ir mais adiante. Continuando agora a pé na mesma direção chegareis a uma grande lagoa negra, a qual deixareis do lado esquerdo e, para além dela, tratareis de descer a encosta, de forma a chegar a um desfiladeiro por onde desce um fio de água; e aqui encontrareis uma ponte de três mastros, ou se ela não existir mais, colocareis outro no lugar mais conveniente e passareis por cima dela. E tendo continuado por um curto trecho dentro da floresta, procurai pela choça que servia para dormir ou os restos dela. Depois de passar a noite ali, continuai vosso caminho no dia seguinte pela floresta na mesma direção, até chegar a outro desfiladeiro profundo e seco, através do qual tereis que fazer uma ponte e passar por ele, devagar e com muita cautela, pois o desfiladeiro é muito profundo; isso se não conseguirdes encontrar o passo que lá existe. Segui adiante e procurai os restos de outro lugar para pernoitar, que, garanto-vos, não deixareis de encontrar pelos fragmentos de potes e outras marcas, porque os índios por ali passam continuamente. 
Segui em frente e vereis uma montanha toda de margacitas (3), que deixareis à vossa esquerda, e eu vos aviso para contorná-la neste formato de G. Neste lado encontrareis um gramado em uma pequena planície, a qual, depois de passar por ela, chegareis a um passo estreito entre duas colinas, que é a Trilha Inca. A partir daí, ao continuar, vereis a entrada para o sumidouro, que tem a forma de um portal de igreja.
Tendo saído do estreito e percorrido uma boa distância, percebereis uma cachoeira que desce de um pequeno braço do Cerro Llanganatis e deságua em um pântano do lado direito; e sem passar pelo riacho, no dito pântano tem muito ouro, de maneira que pondo na mão o que  puderdes empunhar, no fundo tudo são grãos de ouro. Para subir a montanha, saí do pântano e continuai à direita e passai pela cachoeira, contornando o pequeno braço da montanha. E se por acaso a boca do sumidouro for fechada com certas ervas que eles chamam de selvagens, retirai-as e encontrareis a entrada. E no lado esquerdo da montanha podereis ver a guayra (porque era assim que os antigos chamavam a fornalha onde eles fundiam metais), que é cravejada de ouro. E para chegar à terceira montanha, se não conseguirdes passar pela frente do sumidouro, é a primeira coisa passar por detrás, pois a água da lagoa cai dentro dele.
Se vos perderdes na mata, procurai o rio, segui até o canto inferior direito, tomai a praia, e chegareis ao estreito de tal forma que, mesmo que tenteis passar por ele, não encontrareis por onde; subi bem alto, a montanha do lado direito, e assim não perdereis de forma alguma o caminho. "

Esse documento que descreve cuidadosamente a localização do tesouro inca foi escrito por um espanhol chamado Valverde que morou no Equador e supostamente soube da localização do tesouro inca através da família de sua esposa nativa. Valverde, tendo retornado muito rico à Espanha, em seu leito de morte escreveu as instruções para a localização do tesouro,  enviando-a ao rei. Supostamente o rei a teria mandado ao Equador. Uma expedição foi organizada pelo administrador de Latacunga, Antonio Pastor y Marín de Segura e um sacerdote, Padre Longo, com o objetivo de encontrar esse tesouro. Todas as instruções foram seguidas mas, próximo ao local do tesouro, Padre Longo desapareceu, ou morreu, em circunstâncias misteriosas e a expedição foi abandonada. Depois disso, o guia de Valverde teria sido depositado nos arquivos públicos de Latacunga, cidade a noroeste de Baños. Bem...

A expedição quase chegara ao fim do percurso quando uma noite o Padre Longo desapareceu misteriosamente e nenhum vestígio dele pôde ser descoberto, talvez tenha caído em um precipício próximo ao acampamento ou em um dos pântanos que ali proliferam, fato é que nunca mais o encontraram. Depois de procurar em vão pelo sacerdote por alguns dias, a expedição voltou sem obter êxito e com esse rastro de morte em seu caminho."

No entanto, supostamente, Pastor parece ter descoberto muito ouro, mantendo consigo o guia, o Derrotero original, e deixando uma cópia na sede administrativa de Latacunga, com a pista final alterada, para que outros não pudessem encontrar o tesouro. Não são poucos os que acreditam que o tesouro tenha sido localizado e retirado por Antonio Pastor y Marín de Segura no final do século 18.

No ano de 1793, o sacerdote de Píllaro, Mariano Enríquez de Guzmán, fez uma expedição ao Llanganatis, aparentemente sem sucesso, pois utilizara o falso Guia deixado por Pastor, onde podia-se ler na capa as seguintes anotações "Guía o Derrotero que Valverde dejó en España donde la muerte le sorprendió a él, habiendo ido desde las montañas de Llanganati, a las cuales el entró muchas veces y sacó una gran cantidad de oro; y el Rey ordenó a los Corregidores de Tacunga y Ambato que buscasen el tesoro, cuya Orden y Guía se conservan en una de las oficinas de Tacunga"(Guia ou Rota que Valverde deixou na Espanha onde a morte o surpreendeu, tendo ido das montanhas de Llanganati, às quais entrou muitas vezes e retirou uma grande quantidade de ouro; e o Rei ordenou aos Corregidores de Tacunga e Ambato que procurassem o tesouro, cuja Ordem e Guia são mantidos em um dos escritórios em Tacunga). 

Seguindo essa linha do tempo, Pastor deixara sua família em Ambato, viajando para Lima, estabelecendo-se na capital e, havendo falecido sua esposa em 1801, casou-se, no Peru, em segundas núpcias, com Narcisa Martínez de Tejada y Ovalle, havendo desse casamento apenas um filho, José Mariano Pantaleón Pastor y Martínez de Tejada, nascido em 27 de  Julho de 1802.
Em 1803, Pastor teria embarcado um carregamento de valiosas barras de ouro e outros metais em uma fragata inglesa, para ser depositado no Royal Bank of Scotland (Escócia) por Sir Francis Mollison, conforme procuração outorgada em seu favor. As barras deveriam gerar juros e o valor total de tudo seria repartido entre os descendentes do referido casamento, mas apenas na quinta geração.

A lenda ganhou o mundo quando o botânico Richard Spruce descobriu  o Derrotero de Valverde e um mapa desenhado por um equatoriano em nome de Don Atanasio Guzmán, informação essa publicada pela Royal Geographical Society em 1860. 

Entre 1933 e 1934, Luciano Andrade Marín, geógrafo e historiador equatoriano, o italiano Tullio Boschetti, Umberto Ré e vinte e cinco indígenas carregadores fizeram uma expedição ao Llanganatis. Andrade Marín publicou o livro "Viaje a las misteriosas montañas de los Llanganati"(Viagem às misteriosas montanhas do Llanganati), com os registros do estudo que fizera da flora, fauna e geografia da região, narrando a fantástica expedição documentada naquele livro, declarado Patrimônio Cultural do Equador e que pode ser consultado na Biblioteca Nacional de Quito.
Andrade Marin mostra que o Derrotero contém vários dias de viagem, sendo que os primeiros três ou quatro dias denotam uma enorme precisão com  relação à realidade geográfica da região de Pillaro e quanto à entrada para as montanhas dos Llanganatis.


Parece que em 1954 teria sido encontrado um rudimentar mapa do Tesouro, pintado em cores pelo Cura Enríquez que, não satisfeito com o mapa que havia feio, teria levado consigo a cópia do Guia dos escritórios de Latacunga,  que anos mais tarde parece ter pertencido ao Sr. Lorenzo Gortaire Viteri, morador de Quito no final do século passado, que a deixou para seus herdeiros quando morreu, os quais a teriam vendido a um sueco chamado Stellan Moerner, que se passava por conde em Quito no início deste século, mostrando-se muito interessado em localizar o tesouro.


  Descendentes diretos dos que haviam sido chefes na região contaram que o antigo rei de Píllaro de San Miguel, chamado Pillahuaso Ati, filho de Pillahuaso Ati de San Miguel, casara-se com a rainha Choazanguil de Huainacusi e fora pai de uma filha com a qual um dia casou-se o Inca Huayna Capac: deste casamento nasceu, em Píllaro, o General Rumiñahui.
 
Rumiñahui, irmão de Atahualpa, ou não, era seu homem de confiança. Desde novembro de 1532, quando Pizarro capturou Atahualpa, até agosto de 1533, quando foi executado, passaram-se nove meses até o trágico fim do Império Inca. Tempo que Pizarro aproveitou, lucrando com a grande confederação do povo Inca enquanto Rumiñahui apressava-se em coletar ouro para subsidiar a liberdade de Atahualpa.

Rumiñahui organizou a resistência e, ao mesmo tempo, tentou manter a liberdade dos seus domínios entre os quais encontrava-se o reino de Quito. Rumiñahui manteve a reação contra os espanhóis de um lado, enquanto lutava contra o que restava do império inca do outro.
Rumiñahui tinha poder real para fazer isso. Quando Huascar foi morto por outro exército de Atahualpa que, liderado por Quisquis, havia tomado Cusco, Rumiñahui foi o comandante supremo do império inca que, então, estava completamente desmembrado.

 De qualquer forma, quando, na calada da noite, o corpo de Atahualpa tomou a direção do norte, carregado pelo General Rumiñahui e seus soldados, desaparecendo na névoa dos Andes para sempre, levou consigo um rastro de segredos que jamais seriam revelados . Os espanhóis realmente tentaram, sob tortura, puxar pelo menos alguns desses segredos, mas não conseguiram nada. Apenas mais morte, tortura e destruição. Atahualpa conseguiu o que queria, dentro da tragédia que causara para si mesmo e para os outros: preservar seu corpo, para não ser destruído e poder voltar à vida, como sempre acreditaram todos os Incas. Preservando os tesouros porque, o que era apenas metal precioso para os estrangeiros, para os Incas era sua fé no Sol enquanto Deus, do qual o ouro era o suor, a fé em sua cultura de filhos do Sol e a preservação da própria vida, neste mundo e no próximo.



Bibliografia:

Frei Martín de Murúa: Historia general del Perú. Origen y descendencia de los Incas (1611).


 


continua....