2.09.2011

SAYCUSCA - A PEDRA QUE CHORA SANGUE


Conta a lenda que...


 As pedras usadas para construir a fortaleza de Sacsayhuaman vieram do Reino de Quito (atual Equador) que, naquela época, fora incorporado ao Império Inca. O empenho havia sido grande para que essas pedras pudessem ser trazidas de tão longa distância. O grau de dificuldade aumentava quanto maior o tamanho dessas rochas gigantescas e o esforço humano empregado ultrapassava qualquer modo prático de descrevê-lo.
Arrancadas da cordilheira quitenha, as pedras desenhavam um trajeto cinzento que se esboçava, através das trilhas, levantando nuvens de poeira - misturando-se ao suor dos carregadores de Quito. O céu azul-claro não dava margem a cúmulos de nenhuma espécie, deixando que o sol reinasse, soberano, todo o tempo, no silêncio entrecortado de gritos e lamentos. 
Tudo movia-se, lentamente, ao redor das imensas rochas transportadas, com dificuldade, pelos milhares de braços que as direcionavam, comandados pelos soldados do príncipe Urco, filho de Wiracocha Inca.
O canto dos pássaros, o som das cascatas, o apelo da montanha com suas flautas no pastoreio, tudo perdia-se, pois a canção era o lamento. Como notas de um hino militar compassado - poeira, suor, gritos - o sopé dos Andes vibrando um arremedo de tremor. O que seria insuportável, ordenava-se, no caos, como criação...
Semanas sucederam-se, sem descanso, no vento e na coragem, diluindo o tempo no cansaço dos homens que pareciam marchar dentro de um outro mundo, ausentes da presença do futuro Inca.


Assim continua a lenda...


Ao jovem futuro Inca, além de um cortejo real, seguiam inúmeros carregadores de jarros que serviam a bebida sagrada, repetidamente, ao filho do Filho do Sol.


É o que diz a lenda...


O grande disco de ouro, com a imagem do Inti (Sol), que encimava a liteira do príncipe, refletia o sol de modo efusivo, alongando, lindamente, seus raios toda vez que ele se mexia, acomodando-se na cadeira. 
Os trabalhadores seguiam, à frente, conduzindo o maior de todos os pedaços de rocha, gigantesco megálito, cuja forma retangular sugeria que fosse um dos menires (1) adorados pelos canharis (2). Fruto de uma antiga erupção vulcânica, a pedra parecia dificultar o transporte, como deus arrancado de seu altar de adoração e de seu povo, oscilando a cada movimento, como se quisesse cravar-se, ali mesmo, expondo suas marcas de fogo e ferro.
A procissão arrastava-se pelas encostas e planícies, cheia de lamentos, como orações, inventando novos caminhos sobre os antigos, até que caísse a noite. O anoitecer trazia o alento, o descanso e as forças renovadas para um novo dia.


Continua a lenda...


Os homens da guarda imperial, diante da obstinação de seu senhor, murmuravam que ele havia enlouquecido, ou pelo excesso de bebida ou pela ação do sol equatorial. E a empreitada até o sul parecia piorar a situação do príncipe, agravando seu estado de tristeza e loucura. Dentro da noite, algo parecia atormentá-lo. E, na medida em que se afastava de seu lugar de origem, a pedra parecia aumentar de peso. Apesar dos esforços consideráveis empregados pelos carregadores, ela não avançava. Até que não puderam movê-la mais. Quanto mais o príncipe queria levá-la, maior parecia ser a resistência da rocha. Então, chamaram-na Saycusca - pedra cansada.


A fortaleza de Sacsayhuaman apareceu no horizonte, com seus blocos de pedra enormes que, no entanto, pareciam simples rochas diante das que foram trazidas por Urco. O feito foi descrito por Garcilaso de La Vega, em seus Comentarios Reales; assim também descreveu ele o modo como tudo foi destruído, algum tempo depois, antes mesmo de terminada a fortaleza, pelos espanhóis que, cortaram as pedras, principalmente as trabalhadas, para fazer suas casas em Cusco. Tiraram as pedras maiores, que serviam de viga, para fazer os umbrais e as menores, para paredes.  O próprio Garcilaso relata essa lenda.


Enfim... Dizem que a tal pedra falou, antes que chegassem à fortaleza, dizendo saycunin, que significa cansei-me - e chorou sangue. Os guardas ordenaram aos carregadores que prosseguissem mas, os infelizes não podiam movê-la, grudada na terra. Quando pensaram que podiam movê-la, as cordas arrebentaram e o monólito precipitou-se sobre os que iam à frente, matando três ou quatro mil carregadores, rolando por várias centenas de metros. Parou perto de Sacsayhuaman e ficou, ali, toda coberta de sangue humano. Ficou ali, tosca, tal qual fora retirada de seu lugar de origem, sem nunca ser trabalhada, não chegando, jamais, a ser colocada na fortaleza.




Conta a lenda que diante da mortandade e da resistência de Saycusca, os carregadores, que eram de Quito, revoltaram-se contra os soldados, matando-os com suas próprias armas. Que eles, inspirados pela presença sangrenta, teriam travado uma verdadeira batalha em volta do megálito, voltando-se, depois, contra o próprio futuro Inca, degolando-o e abandonando seu cadáver aos pés da Saycusca.
Pela lenda que eu li, contam algumas coisas mais, porém, já é o bastante.
O que importa é que a pedra cansada ficou no lugar, olhando a História passar por ela, com seus olhos megalíticos cheios de lágrimas de sangue.

Assim a descreveu Garcilaso"Em um dos cantos de cima tem um buraco ou dois que, se bem me lembro, atravessam de um lado a outro. Dizem os índios que aqueles buracos são os olhos da pedra pelos quais chorou sangue. Do pó que se acumula nos buracos e da água da chuva e escorre pedra abaixo, forma-se uma mancha ou sinal vermelho, porque a terra é vermelha naquele local.  Este é o sangue que derramou quando chorou ".

Coberta de lágrimas, do sangue dos homens de Quito, substâncias ferruginosas ou pó vermelho, Saycusca, a pedra cansada, viu passar a História, nos últimos quinhentos anos, de forma trágica e esfacelada, qual ela mesma, parte arrancada da cordilheira equatorial, sem chegar ao destino e, vendo com seus olhos de pedra a fortaleza de Sacsayhuaman ser cortada em pedaços e espalhada, aos quatro suyos, como o próprio Tahuantinsuyo, rompido pelas mãos de estrangeiros. 
Chora, ainda, assim como o povo, mergulhado dentro de uma noite que já dura quinhentos anos.


Como diz Garcilaso, a verdade histórica, como o contavam os Incas amautas, que eram os sábios, filósofos e doutores nas coisas de sua gente, é que a pedra era trazida por mais de vinte mil homens que a arrastavam com grandes cordas: metade deles mantinham-na com as cordas pela frente e a outra metade entrelaçadas atrás, para que não deslizasse encosta abaixo. Que, por descuido, rolou matando três ou quatro mil e que o sangue que chorou, choraram eles e que cansou-se porque, na verdade, eles cansaram. O cronista não diz nada sobre Urco, sua morte ou sobre a batalha travada ali. Fica por conta da lenda...




Através da famosa Avenida de Los Volcanes (Avenida dos Vulcões), a partir de Quito, nossa admiração perde as palavras com os onze dos vinte e cinco vulcões do Equador: Carihuairazo, Pasachoa, Ilinizas e Cotopaxi (perfeito cone de neves eternas), atravessando El Arenal, um campo de cinzas, seguindo o caminho através do bosque enevoado, talvez parando para descansar na Cascada del Cielo.

Pelas desalentadas paisagens ao redor do vulcão Altar e da Cordilheira dos Andes, podemos sentir-nos sem fôlego, deslizando para dentro da lenda, transportados a centenas de anos no passado. 


Atravesse o pântano e as belezas das lagoas negras de Minzas.


Com umas três horas a pé na subida para o vulcão Tungurahua, a três mil e oitocentos metros do nível do mar, podemos redesenhar o caminho para admirar não só esse vulcão, bem como o Cotopaxi, o Cerro Hermoso e o Parque Nacional de Llanganates, enchendo nossos olhos com as mais belas cores, flores, orquídeas, bosques, animais e lindas aves. No refúgio do vulcão, a paisagem lunar talvez cause um impacto irreversível em nossas almas com seu vazio de cinzas e pedras vulcânicas - o som do vulcão nos leva a imaginar a cratera, que está a apenas a pouco mais de dois quilômetros de distância, em constante erupção.


Aos pés do Tungurahua, a poucos quilômetros da floresta amazônica, no Parque Nacional do Sangay, passamos por planícies verdejantes na província de Guayas com suas plantações de banana e campos de arroz, atravessando a diversidade do sopé da Cordilheira dos Andes subindo pelos gélidos e áridos desertos de areia e pedra, a poucos quilômetros do Chimborazo.


O Sangay, em  língua quechua "o assustador", também conhecido como Macas, Sanagay ou Sangai, cuja erupção iniciada em 1934 ainda está em andamento, localiza-se no limite sul da Zona Vulcânica do Norte, um dos arcos do cinturão vulcânico dos Andes, e esta sua posição sobre dois grandes pedaços de crosta parece ser a responsável por sua intensa atividade. Em aproximadamente quinhentos mil anos o Sangay tem sido marcado pela instabilidade, pois duas versões anteriores da montanha foram destruídas em grandes colapsos maciços que deixaram evidências pelos arredores.
Mesmo assim, na beleza aterradora de tamanho perigo, talvez devido à sua remota localização, o Sangay possui significativa relevância biológica, protegida como parte do Parque Nacional Sangay. Como um Apu recluso, mantém-se dentro de seu isolamento, resguardado dentro das más condições climáticas, inundações dos rios e o perigo de quedas que afastam a maioria daqueles que desejam escalá-lo, vencendo-o.



Como eterna lenda...


                                                                                   


(1) Menir ou menhir - monumento megalítico do período neolítico, de forma alongada, altura variável de até cerca de onze metros e fixado verticalmente no solo. Podia servir de marco astronômico ou representar totem ou espíritos.

(2) Canharis - A nação Canhari habitava o território que hoje compreende as duas províncias do Azuay e de Canhar, no atual Equador.

                                                                                    ***


*QUITO, PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE: A capital do Equador foi a primeira cidade do mundo a ser tombada pela UNESCO como patrimônio da Humanidade, em setembro de 1978. É uma das mais belas capitais da América do Sul com 10.000 anos de história. O seu Centro Histórico é o maior do continente, com mais de 30 prédios religiosos tais como igrejas, mosteiros e conventos. A PLAZA GRANDE (1535), monumento dedicado aos heróis que morreram, em 2 de agosto de 1810, assassinados pelos espanhóis, ma primeira tentativa de libertação. 
O Palácio Arcebispal (1700) e seus arcos; A Casa do Prefeito (1534); o Hotel Plaza Grande (1936); O Convento de Freiras da Conceição (1575); Palácio de Governo (1612) e Catedral Primada (1535); Rua García Moreno passando pela Igrejinha de El Sagrário, ao lado da catedral; O Centro Cultural Metropolitano, antigo prédio dos jesuítas (construído por volta de 1586). 
A Igreja da Companhia de Jesus (1605), a maior obra prima da arquitetura colonial quitenha - fachada lavrada em pedra (1722) e o interior coberto de ouro. O Convento de São Francisco, o mais antigo da América do Sul (1535),  possuindo a maior coleção de Arte Sacra da região, o Museu da Cidade, os Conventos de São Domingos e Santo Agostinho.
                                         







                                                                 

2.08.2011

WAQANKI - TU CHORARÁS (LÁGRIMAS SOBRE ORQUÍDEAS)










"Waqanki...Waqanki...Waqanki..." (1) 

Conta a lenda que...


Durante uma cerimônia de premiação do Exército Inca, que retornara vitorioso de uma campanha, uma das princesas apaixonou-se por um dos jovens oficiais que, também, a amou muito.
Não demorou nada para que o Inca fosse informado do que estava acontecendo. Irritando-se profundamente por saber que um homem comum ousara envolver-se com uma das princesas, ele, então, ordena sua prisão e morte.
A princesa, desesperada, intercede junto ao Inca e ele concede o perdão ao jovem, poupando-lhe a vida. No entanto, nada satisfeito com toda essa história, envia o jovem oficial, junto com um pequeno destacamento, para reprimir uma rebelião em uma área do Antisuyo, nos confins da floresta amazônica, pois tinha certeza de que seria uma missão impossível e que o final da história seria sua morte.
A bela princesa, louca de dor, corre, pela floresta, em busca de seu amado, chorando, sem consolo.
E por onde suas lágrimas caíam, uma flores lindas iam desabrochando... Desde esse momento, as flores dessa espécie são conhecidas por Orquídeas Waqanki.


A tradição oral de Cusco conservou a Lenda de Waqanki como o desabrochar da Masdevallia Veitchiana, em cujas pétalas se pode ver uma corrente de gotículas.




Os Incas cultivavam as orquídeas, flores bastante comuns nos Andes. O cronista Felipe Guamán Poma de Ayala, em 1615, descreveu a esposa do Inca Sinchi Roca, Chimbo Urma Coya que tinha, nas mãos, ramalhetes de "flores inquilcona"(orquídeas) e possuía, também, um jardim. Em idioma quéchua usa-se "inkill" para orquídea e a terminação "cona" para designar o plural.
As culturas pré-colombianas dos Andes deram nomes às orquídeas em idiomas nativos. Uritu para a Lycaste, Gaiwampu para a Oncidium, Shacashaca para o Pseudobulbo, Wapagana para a Sobralia, Waqanki para a Masdevalia, Inkill para a Sobralia Altíssima.




A Masdevalia veitchiana obteve o prêmio "Certificado de Primeira Classe" outorgado pela "American Orchid Society".


(1) (quéchua: tu chorarás....)









2.05.2011

QAMPI-CAMAYOQ -O LADO AVANÇADO DA MEDICINA





Quero falar de um assunto que detesto mas, parece interessante para a maioria das pessoas. Não me sinto muito à vontade porém, lá vai... 


Não, não conta a lenda... Porque estudos sérios foram realizados e alguma coisa real parece ter sido estabelecida de fato. Digo parece porque é difícil separar o joio do trigo, como em tudo o que se refere ao Império Inca. Misturam as várias Civilizações e Culturas anteriores e que serviram de base para a formação do povo inca ( Mochica, Chimu, Tiahuanaco, Huari, Chavin) mas que, de fato e de verdade, apenas, influenciaram sua Cultura - seu modo de lutar, de governar, suas regras, tudo, enfim, foi organizado e posto em prática em pouquíssimos anos. Estamos falando, aqui, de milhares de anos de civilizações pré-incas contra cento e poucos anos de Império Inca. No entanto, quem sou eu para contradizer aqueles que se ocupam de estudos, e mais estudos, científicos para determinar o que foi e o que não foi. 
Então, meio lenda, meio realidade, como se diz hoje em dia... rompendo o "tecido da realidade", lá vamos nós...


Contam os estudos...


Quando um inca ficava doente, chamava o qampi-camayoq (ou hampicamayoc), literalmente, um "encarregado dos remédios"; ele tinha o dever de cuidar da saúde do Inca e de sua família. Valdivia (1) (1986) diz com respeito a isso: "era o verdadeiro médico, no sentido estrito da palavra, e exercia a medicina, exclusivamente, a serviço do Inca ou da nobreza."


No entanto, apesar de pessoas ligadas ao Inca e sua família, o que o colocaria em uma posição afastada das pessoas comuns, sabemos, através desses estudos em medicina, que os qampi-camayoq agiram de forma efetiva nas guerras, por exemplo, onde aplicavam uma medicina, altamente, avançada e com excelente resultado, embora, é claro, não pudessem salvar a todos os que necessitavam de seu precioso auxílio.
Cirurgia, anestésicos e outras práticas cirúrgicas estavam avançadas, entre os Incas, assim como nas culturas pré-incas que os precederam - eles executavam as mais delicadas operações de crânio, trepanando as cabeças dos guerreiros feridos pelo impacto de um machado de combate e removendo os pedaços de osso que pressionavam o cérebro causando paralisia.

Inúmeros crânios encontrados nos túmulos (???) apresentam regeneração do tecido ósseo, revelando que uma operação cirúrgica realizada, ali, obtivera êxito. Do mesmo modo, foram descobertos crânios, que haviam sofrido intervenções cirúrgicas, em túmulos de culturas anteriores de cerca de dois mil anos.
É preciso constatar que, graças aos estudos realizados pelos cirurgiões peruanos, Francisco Grana e Esteban Rocca, o avanço nessa área da medicina, no período Inca pode ser, devidamente, comprovado - com os mesmos instrumentos e empregando as mesmas técnicas incas para operar ( com exceção da anestesia geral), Grana e Rocca efetuaram uma trepanação em um paciente vivo. Do mesmo modo, aplicaram torniquete inca (que se aplicava em volta da cabeça), provando a eficácia de seus métodos cirúrgicos.





No auge do Império, como na época de Tupac Yupanqui e Huayna Qhapaq, por exemplo, havia duzentos mil guerreiros em um só exército; dez mil membros só na guarda imperial (soldados de elite). Segundo consta, os Incas foram capazes de mobilizar milhões de soldados (Pachacutec (2) contou com quatro milhões e meio de soldados em suas campanhas e, Tupac Yupanqui, seis millhões).




                                                             macana inca




Uma das armas ofensivas mais comuns era a macana (quéchua chaska chuqui, ou lança com ponta de estrela), instrumento cuja "extremidade contundente" era redonda, ou em forma de estrela, e feita de pedra ou bronze. Eram as armas mais comuns do exército inca e também eram feitas de ouro ou prata, de acordo com a graduação do soldado. O melhor lugar para desferir o golpe era a cabeça, sendo abundantes as lesões no crânio adquiridas em batalhas. Percebendo a relação existente entre o ferimento ocasionado por uma macana e a pressão no cérebro os qampi-camayoq desenvolveram a técnica de trepanar.



                                                          maca em estrela



Mais de 10 mil crânios operados foram encontrados, no interior de túmulos, por todo o Peru e, em muitos deles, instrumentos cirúrgicos, como facas de obsidiana (tipo de vidro natural, de cor preta ou escura, produzido por vulcões quando a lava esfria rapidamente).  As lâminas de obsidiana podem ter uma borda de corte tão fina quanto a dos bisturis de aço cirúrgico de alta qualidade com cabos de madeira, para trepanar. Ainda encontraram tumis (facas cerimoniais), que usavam para cortar o couro cabeludo. Faziam parte do arsenal cirúrgico talhadeiras (escopos) de bronze, pinças de cobre e agulhas de sutura. Foi com esses instrumentos que os médicos Grana e Rocca efetuaram uma trepanação em um paciente vivo.






                                                     maca com pontas

No Império Inca, a neurocirurgia era adiantada e sofisticada. Ficou evidenciada a delicadeza que os cirurgiões tinham ao operar, pois preservavam importantes sulcos e circunvoluções cerebrais. Havia poucas infecções, pois usavam ervas anti-sépticas. A anestesia usada não é conhecida, mas é provável o uso da coca. Curas e recuperação eram obtidas em cerca de 70% dos casos. 
Não se chegou a um acordo para determinar que planta seria usada para produzir a anestesia geral requerida para preparar um paciente com o crânio fraturado, para receber a intervenção de um qampi-camayoq, portanto, não tentarei descrever nenhuma das possíveis plantas. No entanto, devido a ser a folha mais sagrada dos Incas, a coca, cujo nome botânico é erythroxylum coca, cultivada nas cálidas yungas e nas partes inferiores dos Andes orientais, pode, sim, ter sido a escolhida, por tratar-se de uma planta em cujas folhas há um alcalóide, conhecido, como mehtyl-benzil-ecogine. Houve um tempo em que foi usado como anestésico local e, ainda, em 1900, era considerado um maravilhoso tônico para os nervos. O vinho da coca desfrutou de muito apreço; Sigmund Freud foi um inveterado consumidor
De folhas lustrosas, que têm certa semelhança com as do chá, essas folhas são cortadas, quatro vezes em quatorze meses, e postas, cuidadosamente, para secar ao sol, sendo depois transferidas para a sombra, a fim de reter a cor verde. No entanto, isso seria mera especulação; apesar do sagrado papel da coca no Império Inca, acho que seria muito difícil provar isso.

A medicina pré-colombiana estava ligada à religião (algumas doenças eram atribuídas aos deuses, assim como o seu tratamento), à magia (acreditavam que algumas doenças eram provocadas por feiticeiros) e à ciência (conheciam as propriedades curativas das plantas e de alguns minerais). Era, também, praticada pelos curandeiros, que pertenciam à casta dos sacerdotes. Os pais ensinavam a profissão a seus filhos e esses herdavam o cargo. O médico desfrutava de grande consideração em toda a sociedade pré-colombiana.
Os incas fizeram várias descobertas farmacológicas: usavam o quinino no tratamento da malária. As folhas de coca eram usadas, de modo geral, como analgésico e para
minorar a fome, embora os mensageiros chasqui (homens que corriam para levar mensagens por todo o império Inca) as usassem para obter energia extra. 


Felipe Guaman Poma de Ayala, mais conhecido como Huaman Poma, que nasceu em 1550, escreveu um manuscrito, com informações completas sobre a prática da medicina, durante a civilização inca; o manuscrito original foi mantido na Biblioteca Real da Dinamarca desde 1660, só vindo a público em 1908, quando foi descoberto pelo estudioso alemão Richard Pietschmann. 


Segundo o manuscrito, os Incas acreditam que todas as doenças eram provocadas pela ação de forças sobrenaturais. Além disso, as mentiras, pecados contra deuses ou quebrar leis incas seriam razões suficientes para ficar doente. Os remédios eram combinações de ervas e minerais, sempre acompanhado com orações e magias. 


Os médicos incas eram capazes de tratar, com sucesso, doenças do sistema imunológico, aumentando a produção de glóbulos brancos ou leucócitos que, naturalmente, detinham o avanço de algumas doenças. Sabiam como tratar doenças urinárias e distúrbios respiratórios, como tosse ou bronquite; como restaurar o bom funcionamento do sistema gastrointestinal e problemas de desempenho sexual, entre outras.


A medicina inca tinha três tipos de médicos: o primeiro tipo chamado Watukk - seu trabalho era descobrir a origem da doença, através de um processo interpretativo da vida diária  da pessoa doente; O Watukk rastreava o somático global, o emocional e a fase da patologia do paciente - ele era inteiramente responsável pelo diagnóstico correto. 


O Hanpeq é o segundo tipo de médico: ele era responsável em aplicar seu conhecimento médico sobre a doença, misturando e ligando as propriedades das ervas e minerais para curar o paciente, colocando especial atenção na correta aplicação do remédio e pós-tratamento. O Hanpeq seria o que chamamos hoje de xamã, uma espécie de religioso, místico e médico de medicina natural.


O último tipo de médico é o Paqo: seu trabalho era estritamente focado no tratamento da alma, os incas acreditam que a alma estava localizada no coração. O paqo era responsável por sincronizar a saúde do espírito com o corpo, seu principal objetivo era prevenir e tratar as reações adversas dos remédios no corpo, para afetar, o menos possível, as condições de vida do paciente. 

A medicina inca era tão complexa que classificava e tratava tristeza, melancolia, doenças mentais, aflições graves de comportamento, raiva, covardia, arrependimento, ansiedade, tristeza, medo patológico, demência, distúrbios psicóticos graves como a loucura, insanidade, idiotia e histeria, entre outras.

A escola médica inca podia durar de três até cinco anos, dependendo das habilidades do aluno. Era uma educação rigorosa no estudo das propriedades das ervas e dos minerais, como usá-los, as quantidades de remédios, diagnósticos de doenças. Eles ensinavam aos alunos como reconhecer as doenças conhecidas e como elas deveriam ser tratadas. Após o aluno concluir o curso de medicina, ele tinha de praticar muitos anos antes de ser considerado um médico. 

Os médicos estavam em constante busca de novas ervas e minerais, procurando novas soluções e melhorar as antigas; A busca por respostas é a razão do seu grande desenvolvimento. O poder curativo da medicina inca era absolutamente extraordinário. Além do lado religioso e feitiços mágicos, que faziam parte do tratamento, os médicos ajudavam o paciente a acreditar que ele estava curado, fato que liberaria endorfina na corrente sanguínea, auxiliando a auto-cura do corpo.


Segundo Poma, a medicina inca tinha notáveis de 80 a 90 por cento de taxa de sobrevivência nos procedimentos de cirurgias de crânio. Incrível, considerando os materiais e os conhecimentos da medicina da época, as feridas dos procedimentos de costura eram, absolutamente, perfeitas, com poucos casos de infecção. Nós temos muito poucos manuscritos que descrevem como os médicos incas trabalhavam; é triste constatar que a maior parte deste conhecimento se perdeu no passado. 

BIBLIOGRAFIA:


(1) VALDIVIA, P.O. (1986). Hampicamayoc. Medicina folklórica y su subestrato aborigen en el Perú. UNMSM. Lima

(2) Garcilaso de La Vega - Comentarios Reales de los Incas.







2.04.2011

YAWAR MAYU - TRAVESSIA DA MORTE








Nos Andes, o conceito de morte não é definido como o momento em que o corpo
pára de respirar. É um longo, longo, processo que inclui a aproximação do ato propriamente dito e continua após a expiração, quando os mortos continuam a habitar o mundo dos vivos. 
Assim, os mortos andinos são mais corretamente definidos na palavra quéchua huañuc - "mortal"  (a palavra quéchua huañuy ("morrer") foi usada para significar "completamente e perfeitamente" e não significa o fim absoluto da existência humana, mas, sim, uma nova etapa) - a morte é um processo gradual e não termina quando o corpo termina. Este longo processo pode ser identificado em uma série de condições que são consideradas morte temporária ou quase-morte: sono profundo ou "coma", desmaio, bebedeira ou quase-morte.


(Huañuc é um processo intermitente que marca a passagem de vital e fresco (mas, também, sem forma e mutável)  para o imutável tipo de existência típico de seres muito velhos - uma analogia com plantas, animais e pessoas que passam de estados de vida tenra, suculenta e de rápida mutação, como é o caso de plantas tenras e bebês, para estados pesados, de muito longa duração, como cascas secas, árvores, pessoas idosas e ancestrais mumificados.
O estado de huañuc termina com os rituais finais de luto que transformam a pessoa em um permanente,  ou consagrado, ancestral. Durante a sua transformação, o aspecto não-corpóreo do falecido é preparado para embarcar em uma viagem que termina no reencontro com os antepassados, em seu lar ancestral.
Por outro lado, o conceito de princípio vital ou vigor da anima que, em quéchua é conhecido pelos termos upani ou camaquen. Durante o período colonial também encontramos os termos anima e alma, como em animacunata (espíritos dos mortos).
Guaman Poma descreveu os espíritos de pessoas do Collasuyu e Cuntisuyu que partiam para Puquina Pampa e Coropuna onde eles se uniriam. Ainda hoje, em Cuzco, a montanha Coropuna é conhecida como a terra dos mortos. 
Também se acredita que o mundo dos mortos incluía fazendas onde continuavam a semear e a lavrar os campos pois tinham fome e sede. Assim, o alimento e a bebida eram, periodicamente, oferecidos aos mortos. No século XVII, Cristóbal Haca Malqui, relatou que o aumento do número de mortos havia causado um aumento excessivo no mundo ancestral, de tal forma que os campos distribuídos (topos) se haviam reduzido ao tamanho de uma unha. 


Tal como outrora, ainda se acredita nisso hoje, com alguma variação de região para região.


A crença em uma terra dos mortos, com os campos e culturas, continua. Em Sonqo, comunidade a nordeste de Cusco, dizem que os ancestrais (machukuna - antigo povo) vivem em um mundo paralelo à moderna comunidade; seus campos de batata ocupam o mesmo lugar (em uma outra dimensão), dos campos da comunidade local.
Embora habitando outra dimensão, os mortos continuam a existir em estreita associação com os seus restos mortais. Os Incas respeitosamente cuidavam de suas múmias como sagradas e, os contemporâneos agem de modo semelhante: nas comunidades rurais é comum ver o crânio de um antepassado, no alto de uma prateleira, velando por seus descendentes.


Consideram, também, que é muito perigoso deixar que uma "alma" não alcance o seu destino. Se algo der errado ela voltará para a comunidade. A "anima" poderia causar terríveis doenças, acidentes e aparecer antes do iminente desenlace de um parente ou amigo. Assim, infelizes episódios são atribuídos, não ao indivíduo, mas, à natureza malévola de sua anima
Nem todas as anima alcançam seu destino - o mundo ancestral. 
As almas dos indivíduos pecadores não podem deixar o corpo e estão condenadas a vagar com a carne pútrida apodrecendo fora dele. Essas criaturas são conhecidas como Kukuchi e lembram, na tradição ocidental, os condenados a permanecer no purgatório (ou a vagar no limbo). Os kukuchi são condenados a vagar pelas geleiras; são muito temidos pelo seu desejo de comer carne humana.

O ponto chave de tudo o que estou dizendo é justamente o que determina nessa viagem pelo mundo dos mortos se a travessia será satisfatória, ou não. Trata-se da Achachaca ou Ponte dos Cabelos. Achachaca é uma ponte estreita, fina, sobre um rio largo, feita de cabelo humano. Há quem sustente que existe um bando de cães de cor negra, por ali, e não é difícil que, em algumas comunidades, matem os cães assim descritos quando são encontrados. Devo confessar que gostaria de ter encontrado mais material de pesquisa para apresentar um melhor relato dessa travessia.
A travessia da Ponte de cabelos, Achachaca, parece ser o aspecto mais descrito e conhecido da viagem do morto. A travessia é considerada muito perigosa e a ajuda humana, necessária. Oferendas de cabelo humano são queimadas para que a anima consiga atravessar a ponte com êxito. 

Também acredita-se na travessia do perigoso Puka Mayu, Rio Vermelho (também chamado Yawar Mayu, Rio de Sangue) que é feita pelo espírito que, no caso, é transportado por cães pretos, marrons ou malhados.
O mundo dos mortos é o mesmo lugar dos que esperam para nascer. Durante os rituais de sepultamento, ao falecido são oferecidas, para a viagem, roupa, comida e bebida. Ele prossegue, ao longo de rios subterrâneos, e sobe três níveis, dentro de uma montanha, antes de alcançar sua pacarina no lago das terras altas. Os três níveis se relacionam com a jornada de três anos, daí a necessidade de três banquetes rituais anuais, por parte da comunidade, para alimentar seus mortos.
O papel dos cães parece ser muito relevante, em se tratando de Yawar Mayu, o Rio de Sangue.
Tem mais sorte em contar com a ajuda deles para atravessar o Rio quem trata bem os cães enquanto está vivo.
Os cães não apenas podem mover-se entre os domínios da vida e da morte, mas também são capazes de ver as almas dos mortos. Por outro lado, as almas infelizes podem assumir a forma de cães pretos e visitar seus parentes vivos à noite.


Para finalizar, em uma analogia entre o mundo dos mortos e o dos vivos, eu citaria o etnógrafo e escritor peruano José María Arguedas que deu seu recado ao falar sobre a palavra INCA. 
Inca não significa, apenas, o imperador, "INQA" (segundo ele, esta é a verdadeira forma) é o nome para o modelo original de cada ser, segundo a mitologia quéchua. Assim, as miniaturas humanas podem ser mais poderosas do que gigantes, pois são capazes de conter a potência de todos os antepassados em cada indivíduo.









2.02.2011

O BRILHO DE OURO DO VERDADEIRO TESOURO DE ATAHUALPA







"O templo do Sol estava silencioso e frio. Uma leve bruma envolvera a cidade, adentrando o Templo, como presságio. Huascar Inca parou diante da imagem do Punchau (Inti) e, sem muita emoção, ficou, apenas, observando. Os tempos ancestrais o haviam trazido a esse momento, a um mundo que beirava a perfeição, no qual o Sol podia brilhar para sempre, saltando de luz em luz, nas paredes de ouro do Qoricancha.
A figura do Sol, feita de ouro maciço, seu rosto redondo e vivo, seus raios como chamas de fogo, em uma única peça dourada, tão grande que alcançava de uma parede a outra, fez com que pensasse, por um minuto, na grandeza do Império do Sol. Não havia outro deus como o Sol, nem jamais haveria e, portanto, ninguém, também, maior do que seu Filho. Jamais os Incas adorariam outros deuses. A  Lua. as Estrelas, o Relâmpago, o Arco-íris, eram, apenas, deuses complementares de Seu séquito de luz e criação. 
Lembrou-se de quem era e caminhou até a porta. O Filho do Sol deveria brilhar, dia após dia, como o Pai, para todos - apesar da chuva, da tempestade, do vento, da neve, da escuridão, da morte... Não existe alternativa para tão grande responsabilidade. Pisou com força na direção da saída. A decisão estava tomada - não existem recônditos sob o Sol..."




                                                  




O Qoricancha, Templo do Sol, estava, estranhamente, iluminado nessa tarde nebulosa do ano de 1.532.
O Inca, que tantas vezes percorrera o mesmo caminho, dentro do templo, sentia-se cheio de presságios nesse dia, ao voltar-se para contemplar os corpos embalsamados dos Incas ancestrais. Estes, margeando a figura do Sol, pareciam respirar, sentados em suas cadeiras de ouro, sobre as placas reluzentes do metal. Todos os rostos, voltados para o povo, menos seu pai, Huayna Qhapaq que, posto diante da representação do Sol, mantinha seu rosto voltado para Ele, como seu Filho mais querido.
O Inca caminhou, mais uma vez, até a porta principal do Templo que, abrindo-se para o Norte, reluzia ao sol, como o resto das paredes, cobertas com placas de ouro. Um ruído suave e constante chamava a atenção para a sala dedicada à Lua, suas portas forradas com placas de prata, com a imagem Lunar em uma enorme peça de prata maciça, Mamacullia (Mãe Lua), à qual oram e sacrificam as princesas. Os corpos das rainhas ancestrais ladeavam a sala e a múmia da rainha, mãe de Huayna Qhapaq, face a face com a Lua, ocupava lugar de destaque nela.
Notou que todas as outras salas permaneciam silenciosas - a sala das Estrelas, dos Relâmpagos, Raios e Trovôes, bem como a sala do Arco-íris. Todos esses deuses secundários, inclusive a própria Lua, não eram adorados - só o Sol deveria ser adorado - os outros, eram respeitados como tendo sido criados por ele. e por fazerem parte de seu séquito divino.

Cusco, com seu refulgente templo e seus palácios de ouro, recebia das minas e garimpos, a cada ano, cerca de 15 mil arrobas de ouro e 50 mil de prata, além de numerosas cargas de ouro e pedras preciosas de todos os cantos do Império.

Anexo ao Templo, o Jardim do Sol, que Huascar  havia criado, rivalizava, com aquele, em beleza, porém não em riqueza. Ali, tudo era de ouro e pedras preciosas: torrões de terra, imitados com primor, em ouro e prata, caracóis, lagartos que se arrastavam na terra, delicadamente esculpidos no metal dourado, a relva, as plantas, árvores com frutos de ouro e prata, borboletas delicadas postas nos galhos, pássaros nas árvores como que cantando e voando e sugando o mel das flores - tudo de ouro - o grande milharal, com suas folhas, pendões e espigas que pareciam de verdade; a raiz sagrada da quínua e, para, completar, vinte lhamas de ouro com seus filhotes, equipamentos e pastores.

Passaram-se quase quinhentos anos e o mistério transformou-se em segredo, o segredo fez-se mito e o mito se agita, ao vento do tempo, como bandeira de lendas. Os Incas calaram-se - mesmo sob tortura; os espanhóis  nunca desistiram, embora frustrados com o resultado da busca; e os arqueólogos procuram, até hoje, sem cessar. Seria mesmo verdade que o túnel que conduz ao tesouro inca parte do Qoricancha e tem uma de suas saídas nas proximidades das impressionantes muralhas de Sacsayhuaman, em um lugar chamado Chinkana Grande?

No momento em que o ouro era retirado pelos espanhóis para ser levado à Espanha, muitas peças, principalmente, sagradas, não foram encontradas - objetos do jardim de ouro, por exemplo. Naquele momento, começou a especular-se sobre o que acontecera ao ouro dos Incas. Ali, nascia a lenda de que o ouro estaria em salas e túneis secretos sob o Qoricancha.






O cronista Felipe de Pomares, nos primórdios do século XVII, referiu-se a um príncipe inca chamado Carlos, neto de Cristóbal Paullu Inca, descendente direto de Huayna Qhapaq que, para casar-se com uma espanhola chamada Maria Esquivel, teria lhe contado ser o guardião de uma imensa fortuna escondida. Depois do casamento, ela buscara esse tesouro e, sem encontrá-lo, começara a insultar o marido, constantemente, chamando-o de pobre, incitando-o, desse modo, a lhe mostrar o tal tesouro que ela, enquanto espanhola, buscava sem cessar. Um dia, cansado de tantos insultos, ele decidiu que lhe mostraria e, então, depois de vendar-lhe os olhos, conduziu-a, às vezes, a pé, outras, no colo, por inúmeros becos e porões.
Quando chegaram a um largo subterrâneo, ele lhe tirou a venda e ela pode ver "o mais fabuloso tesouro que se possa imaginar". Contou ela depois que pode ver milhares de objetos de ouro brilhando à luz da tocha: ali estavam estátuas dos incas, todas de ouro, do tamanho de uma criança de doze anos. Havia, ainda, vasos, pratos e outros objetos, tudo de ouro.
O marido vendou-lhe, outra vez, os olhos e conduziu-a, dali, sem levar nada. Louca de ódio, ela o denunciou às autoridades. Era crime ocultar tesouros que, na concepção do governo, pertenciam à Coroa de Espanha: decretaram sua prisão, com a esperança de que, sob tortura, confessasse o local do tesouro. Tudo inútil, ele conseguira fugir para Wilcabamba, último refúgio inca nos Andes.


Em 1814, don Mateo Garcia Pumakahua, descendente de inca e conspirador contra os exércitos reais do Perú, ao que parece, para convencer o coronel Domingo Luis Astete de que haveria ouro bastante para financiar uma revolta independentista, conduziu-o, olhos vendados, através da Praça de Armas de Cusco, depois, até um riacho, talvez o Choquechaca, e, dali, por um caminho secreto no subsolo da cidade. Ali, olhos arregalados, Astete pôde ver pumas com olhos de esmeralda, tijolos de ouro e prata e inúmeras peças de grande valor. Astete pode notar que, naquele momento, o relógio da catedral marcava as nove badaladas da noite.

Alexander Von Humboldt, em seu livro "Views of Nature" (London, Henry G. Bohn, 1850) relata o seguinte:

"O filho de (cacique) Astorpilca, um interessante e simpático de dezessete anos de idade, levou-nos para as ruínas do antigo palácio. Vivendo em grande pobreza, sua imaginação estava cheia de imagens do esplendor subterrâneo e tesouros de ouro que, nos assegurou, estavam escondidos debaixo dos escombros onde estávamos pisando. Ele disse que um de seus antepassados cobrira os olhos de sua esposa e, depois, passando por passagens complicadas a levou aos jardins subterrâneos do Inca. Lá a mulher contemplou a criação de peças de ouro mais puro, árvores com folhas e frutos, pássaros em seus ramos. Entre outras coisa, viu a cadeira de ouro de Atahuallpa..."

(continua) "O filho de Astorpilca me assegurou que, no subsolo, um pouco à direita do lugar onde eu estava, havia uma grande árvore Datura, ou Guanto, cheio de flores, caprichosamente feita de ouro e placas de ouro e que seus galhos estendiam-se até a cadeira do Inca. A mórbida fé, com a qual o jovem afirmava sua crença nessa estória fabulosa, causou uma profunda e melancólica impressão em mim.
Essas ilusões são acalentadas, entre o povo daqui, como meio de garantir-lhes consolação em meio a grande privação e sofrimento terreno. Eu disse ao rapaz, " Já que você e seus pais acreditam, tão firmemente, na existência desses jardins, você não sente, em sua pobreza, um desejo de desfrutar desses tesouros que estão tão próximos de você?" A resposta do jovem peruano foi tão simples e  expressiva  da calma resignação dos habitantes indígenas do país que eu coloquei observações, embaixo, em espanhol, no meu jornal. "Tal desejo ( tal antojo)", disse ele, "nunca nos alcança. Meu pai diz que seria pecado ( que fuese pecado) se nós tivéssemos os galhos de ouro, com todos os seus frutos de ouro, nossos vizinhos brancos nos odiariam e nos feririam. Nós temos um pequeno campo e bom trigo (buen trigo)."


Fiz questão de sublinhar esta breve declaração que, ao contrário do que tenta mostrar a preconceituosa descrição do famoso autor de Views of Nature, Alexander Von Rumboldt, simplesmente, expressa a essência do povo Inca e não seria preciso mais nada para revelar o verdadeiro tesouro de Atahualpa, escondido, em meio aos outros tesouros, materiais, valiosos, preciosos, duradouros mas, passíveis de roubo e apropriação indébita. O verdadeiro tesouro Inca, não pode ser roubado, não foi derretido, muito menos exportado para a Europa, ainda que sob tortura. O espírito desse povo ainda brilha, como o próprio Sol que ele representa. Ainda guardam a si mesmos,  preservam-se, incólumes, puros e verdadeiros, esperando pela volta daquele que eles esperam para libertá-los da opressão dos que ignoram e existência de uma civilização que não conhece o roubo, a mentira ou o ócio. Ama Sua, Ama Llulla, Ama Quella.
  



Nos primeiros dias do mês de março de 2003, a imprensa do mundo inteiro divulgou que  o arqueólogo espanhol Anselm Pi Rambla havia encontrado  um grande túnel, ou galeria subterrânea, de uns dois quilômetros de comprimento, no subsolo da antiga cidade Inca de Qosqo, atual Cusco, que unia  a construção denominada Qoricancha, antigo Templo do sol, atualmente Convento de Santo Domingo à fortaleza de Sacsayhuaman, situada ao norte da cidade.




De acordo com Rambla e seus colaboradores, o túnel não passava de uma pequena parte de um grande emaranhado de galerias, câmaras e mausoléus que, seguramente, estendiam-se no subsolo da cidade, como indicavam os modernos e sofisticados radares que haviam assinalado uma rede de comunicação entre o Convento de Santo Domingo com o Convento de Santa Catalina (Marcahuasi), com a Catedral (Templo de Wiracocha Inca), com o palácio de Huascar, com o Templo de Manco Capac (Colcampata) e com o Huamanmarca. A uns cem metros de profundidade, sob a moderna superfície da cidade de Cusco.
Todos os edifícios estão em perfeito alinhamento astronômico, com o qual se confirmaria que os antigos peruanos também guiaram suas construções pela posição do Sol, da Lua e das constelações.



Em julho de 2.000, quando da assinatura do acordo entre o Instituto Nacional de Cultura do  Perú e a Orden de los Dominicos de Cuzco de um lado e a sociedade de pesquisa de Anselm Pi Rambla (Sociedad Bohic Ruz Explorer) do outro, muitos foram os opositores ao citado projeto e, apesar da grandiosidade da descoberta, após cinco meses apenas, em agosto do ano 2.003, o Instituto Nacional de Cultura do Perú rescindiu os acordos que autorizavam os trabalhos de escavação e pesquisa existentes sob uma grave acusação: o projeto havia sido um grande engano.





As mesmas autoridades, que impediram a continuação dos trabalhos de busca a novos túneis para confirmar a realidade de todas essas lendas, insistiram para que Rambla encerrasse as escavações realizadas no Templo, as quais permaneceram inacabadas, deixando a conclusão dos trabalhos a cargo do grupo de pesquisa: as obras incluíram o pagamento da mão de obra, honorários profissionais, o custo dos materiais para o preenchimento das escavações, bem como a recolocação do material retirado. Do mesmo modo, tiveram de pagar uma caução de seis mil dólares como garantia do cumprimento da realização do encerramento das obras, cujo beneficiário era o Convento de Santo Domingo, de onde partia o túnel.