4.17.2019

CAMINHO PARA CAJAMARCA - UMA VIAGEM NO TEMPO








Assim que deixamos a planície, entramos em um vale estreito, praticamente não cultivado, densamente coberto de algarrobos, huarangos de espinhos longos e outros arbustos. 
Atravessando um vale cheio de sombras e muito agradável, passando por entre moitas de salgueiro, juncos e trepadeiras, e algum incomodo por causa dos espinhos afiados das árvores de huarango.
O pôr do sol há de flechar um raio vermelho no junco do telhado da cabana, desenhada na parede da montanha, acima do chão do vale, mas o amanhecer ainda inunda as massas de rocha, desenrolando luz através das gargantas íngremes nas bordas.
A vegetação, esparsa nas partes mais baixas do vale, com seus traços bem definidos de cactos solitários e arbustos de mimosas, torna-se cada vez mais densa e diversificada, e a chuva que caíra, abundantemente, não só derrubara encostas como recriara esteiras de grama exuberante e áreas de flores coloridas e perfumadas, alternando arbustos de verdes contrastantes.
 Mais acima, nas paredes da montanha, as primeiras árvores pati (1),  
tão comuns no interior do vale, com seus caules curtos e grossos, a casca branco-acinzentada de ramos volumosos,  extremidades revestidas de aglomerados de grandes folhas lobadas em forma de estrela. À sombra da montanha, dispersos e desprotegidos, numerosos rebanhos de pacos pastam; um grande número de animais jovens e saudáveis. No topo, nós descansamos um pouco, na grama, debaixo de uma árvore poderosa, apreciando a belíssima paisagem desenhar-se diante de nossos olhos.

Atrás de nós, as montanhas rochosas que, do vale, pareciam tão altas e que, agora, vemos tão de perto, tendo, diante de nós, a Cordilheira de Cajamarca, toda vestida, em suas alturas até o cume, de verdes escuros e perfumados.

A descida é mais longa e árdua do que a subida, porque o caminho serpenteia por horas, subindo e descendo ao redor da parede da montanha. Em uma ravina, uma manada de guanacos que, assustados com nossa presença, fogem ao nos aproximarmos. Ao meio-dia o caminho, finalmente, desce, outra vez, para o vale. Cruzamos o rio em uma ponte mais ou menos preservada e voltamos para a outra margem. O caminho continua no vale e segue a estrada através de moitas de junco e encostas cobertas de flores; aglomerados de arbustos na vegetação rasteira. Continuamos, à esquerda, onde o caminho nos leva a uma outra colina. Lá em baixo, os telhados de palha das cabanas de uma aldeia singela, paredes caiadas de branco em meio a campos, jardins e mais campos de verde frescor. Ainda teremos de percorrer trinta quilômetros até Cajamarca. O pasto gramado que se deixa cortar, aqui e ali, por densos arbustos, onde as sebes se  redesenham cobertas de flores magníficas, nos situa a quase dois mil e trezentos metros de altura. O caminho sobre o desfiladeiro, íngreme em alguns poucos lugares, chão de barro vermelho ainda um pouco escorregadio por causa da recente estação das chuvas. Aproximando-nos do desfiladeiro, as encostas cobertas de grama se elevam suavemente e, ao chegarmos perto da passagem, as pedras verticais se desalinham estranhamente em formas distintas, uma forma maciça à esquerda, todas elas de tufo vulcânico quebrando as montanhas de ardósia. A pouca distância, em ambos os lados, depósitos de calcário, erigidos verticalmente, formam as paredes do vale que escalamos. Atravessamos o desfiladeiro Paso de la Cumbre  e nossos olhos são assolados pela visão de um amplo vale de lagoas e as casas de Cajamarca logo abaixo de nós.
A visão da planície e a fileira ascendente de elevações atrás dela é de surpreendente beleza. Essas montanhas sobrenaturais, que separam o vale de Cajamarca do Marañon, parecem ser mais altas que a cadeia costeira na qual ela se encontra, mas sobem muito gradualmente, permeadas por uma série de vales graciosos. A estação das chuvas foi embora, depois de tornar tudo em verdejante aquarela; a passagem, as encostas que se seguem a ela.  A descida do desfiladeiro não é íngreme, mas acidentada, cercada por muitos pedaços de tufos.
Imediatamente ao pé de uma colina, encostada na vertente oriental da Cordilheira dos Andes, à beira de uma planície de frente para o norte, situa-se Cajamarca.

Os Andes em Cajamarca estendem uma ramificação de morros muito altos na direção do Maranón, correndo paralela ao rio Cajamarca, que se une ao Huamachuco, para formar o Crisnejas, grande afluente do mesmo Marañon. Uma outra ramificação se estende dos Andes de Cajamarca em direção à Costa, dividindo as águas dos rios Jequetepeque e Chicama. Além disso, uma série de correntes de água que, influenciadas pela gravidade, movem-se no declive do terreno, colina abaixo, variantes em volume, gradiente de fluxo, e geometria dos canais; todas pertencentes aos afluentes de todos esses rios.

Chegamos no início da tarde.

Caminhamos pela cidade e as ruas estão, como em todas as cidades coloniais espanholas, regularmente dispostas, exatamente como foram projetadas, cruzando-se em ângulos retos, nove correndo paralelas entre si, horizontalmente, na direção do vale, do noroeste ao sudeste, dezesseis cruzando-as na direção da colina e, portanto, subindo. Quase no meio da cidade há um grande espaço quadrangular, maior que o da Praça principal em Lima, a quase três mil metros acima do nível do mar. A partir da praça, a rua principal corre para oeste, a Calle del Comercio (2), chamada rua do comércio porque a maioria das lojas e bares estão, aí, localizadas. Das melhores casas, algumas são espaçosas e construídas em estilo clássico espanhol, com quintal e varandas, a maioria é pequena e tem apenas um andar térreo. Todos os telhados são cobertos com telhas grandes e espessas que se projetam para muito além das paredes, apenas para protegê-las da chuva e do sol.

A cidade tem muitas igrejas, todas construídas em rocha sólida e, algumas, ricamente decoradas com esculturas. De acordo com o testemunho dos antigos cronistas, os espanhóis encontraram em Cajamarca consideráveis ​​edifícios reais, dos quais não resta mais nada, sendo que as pedras foram usadas mais tarde para construir essas mesmas igrejas. As casas particulares são quase todas feitas do pior adobe, construídas com muita pedra de argila impura, embora no tufo vulcânico um bloco de construção muito útil estivesse à mão.
Entre as igrejas, três são decoradas com fachadas ornamentadas: Santa Catalina, São Francisco e Belém, mas todas as três estão inacabadas. De fato, de todas as igrejas da cidade, nenhuma foi desenvolvida em suas partes superiores, talvez pelo fato de que a grandeza de seus sonhos fosse demasiada para os meios financeiros dos habitantes, talvez porque o grande zelo religioso do início tenha arrefecido mais tarde.

Santa Catalina, a catedral, ergue-se no lado oeste da praça principal, a Praça das Armas onde, há quinhentos anos, Atahualpa foi executado. A partir da praça, três grandes portais, correspondentes às três naves, conduzem ao interior da paróquia.

Os arcos, decorados com rosetas, os pilares entre eles carregando capitéis coríntios e os eixos  entrelaçados com guirlandas de folhas de videira.
Os três andares, nos quais a fachada deveria ser dividida, foram levados até uma certa altura, concluídos apenas nas peças do meio. De ambos os lados as torres se erguem, mas tudo foi interrompido antes que o segundo andar fosse terminado, e não há sinos pendurados nos arcos que deveriam ser janelas. As naves do interior são arqueadas e executadas em belas proporções, mas a decoração dos altares e do coro é discreta e insípida.

No lado leste da praça, larga e sem pavimento, no meio da qual se ergue uma fonte singela, está o mosteiro franciscano. A entrada para a igreja do mesmo não abre imediatamente após o local, mas em um pequeno jardim, cercado por um muro dando para a rua. O jardim é plantado com roseiras sombreadas por altos salgueiros.
Três pequenas aleias levam aos portais, de modo que as formas delicadas dos mesmos estão parcialmente cobertas pela folhagem, o que aumenta a impressão agradável do todo. A fachada da igreja é semelhante à de Santa Catalina em suas construções e, como esta, é completada apenas em sua peça central, mas o interior da igreja está inteiramente ocupado.
A abóbada é mais alta, os corredores mais espaçosos, uma cúpula nobre se eleva acima da cruz e cúpulas menores sobre os cinco arcos através dos quais os corredores se conectam com a nave central. Os adornos do interior estão de acordo com as belas condições do edifício. O altar principal, assim como os de ambos os lados do transepto  (3) são novos, enquanto os mais antigos têm colunas retorcidas e adornos peculiares do século anterior.
No entanto, todos eles têm um trabalho melhor do que a igreja paroquial e, em todos os aspectos, São Francisco é a mais bela da cidade.

Os cômodos internos do mosteiro são muito mais simples do que se espera dos móveis da igreja, e estão de acordo com as estritas regras dos monges que os habitam. 
Nem mesmo a quadra principal é cercada por claustros abobadados, mas por um telhado de proteção, apoiado em troncos ásperos, sob o qual as entradas para as células estão localizadas.
Além de dois pátios, o retiro encerra um jardim com eucaliptos, no qual estão as ruínas de uma igreja, inspirada nos novos edifícios; acredita-se ser esta capela a mais antiga de Cajamarca.

A melhor vista da cidade é a da colina chamada Santa Apolônia, que se eleva oitenta metros acima da praça principal. Consiste em um núcleo de tufo vulcânico esbranquiçado, coberto de terra, pedregulho e grama curta, sebes de agaves e moitas de grandes cactos espinhosos (4). A parte da frente do cume, que se inclina para trás contra a parede da montanha da Cordilheira, é de sessenta passos de comprimento, e metade da largura, de um pasto coberto de grama, onde as ruínas de uma capela podem ser observadas; paredes de grandes adobes meio desmoronadas. Restos de edifícios antigos já não podem ser encontrados, embora antigamente tivesse existido no morro uma fortaleza. De costas para o vale, a poucos metros abaixo do cume, na borda leste do morro, um assento meio redondo, o chamado assento real, la silla del Inca, rumi tiana, esculpido nas rochas de tufo. A duas jardas de distância, na superfície superior da mesma rocha, vê-se a borda de um segundo quadrado de pedra, igualmente semicircular, um pouco menor que o primeiro. Esta borda é quebrada por um barranco, que tem duas pequenas cavidades, que se comunicam, na superfície da pedra. 
Ambos os assentos semicirculares podem ser encontrados em um pedaço de rocha de três lados, na borda do qual degraus foram esculpidos, cujos restos ainda são claramente reconhecíveis. A visão predominante, em Cajamarca, que descreve a sede descrita acima como a cadeira do rei, a cadeira do trono, que o Inca costumava tomar em ocasiões solenes, parece basear-se em uma lenda.

Descemos para a cidade e seguimos pela rua que leva da praça para o lado do mosteiro de São Francisco. Entramos por  uma porta antiga e frágil para um pequeno pátio de aparência desolada, cercado de muros de barro meio desmoronados, e nos deparamos com a estrutura digna do que restou da glória do passado Inca em Cajamarca. O único vestígio de construção Inca na cidade, edificado em pedra, as paredes ligeiramente inclinadas para dar a forma trapezoidal característica dessa arquitetura. Para onde terá ido o ouro que teria enchido a casa uma vez, há quinhentos anos atrás, em troca da liberdade de seu senhor; onde foi parar a prata que teria enchido a casa duas vezes, para o cumprimento do mesmo acordo? Onde teria ido parar os sons das palavras de Atahualpa, pronunciadas contra o vento gelado que soprava dos Andes, resvalando nas paredes nuas, antes de morrer em sua garganta, e que ainda tentam nos manter como testemunhas dentro das antigas promessas?
Observamos melhor a casa a partir de um jardim adjacente a ela. 
A aprazível morada de Atahualpa está reduzida a um retângulo, cujo lado mais comprido tem dezessete passos voltados para o pátio, enquanto o mais curto mede apenas treze. O resto há de ter sido transformado em igrejas e em tumbas dentro delas.
As paredes do que restou da residência  do Inca, que na época ostentava a liberdade com suas janelas e portas sempre abertas, devassadas pelo Sol, agora repousam sobre o solo rochoso de tufo vulcânico e consistem, em sua parte inferior, de silhares (5) do mesmo material, exatamente de acordo com os apartamentos reais em Huánuco, e outros lugares, cujas ruínas ainda persistem, montadas com precisão e sem argamassa visível. As pedras são quadrangulares, tão altas quanto largas, mas nem todas completamente perpendiculares e nem mesmo colocadas em fileiras bem retas. Na parede da frente foi acrescentada uma margem, a doze pés de altura, seguida mais acima por uma sequência de adobe e uma cobertura simples de telhas antigas.
Devido à condição friável do tufo, a junção não é tão estreita e linear como em Huánuco ou as encontradas nos edifícios em Cusco. 
Diante da casa, quatro colunas de madeira mantém um curto telhado de proteção, sob o qual a entrada está localizada. Embora a porta seja nova, a entrada tem estado lá desde os tempos antigos, três degraus esculpidos na rocha levam à plataforma baixa que se estende sob esse abrigo na frente da casa.
A lua ensaia um brilho acima da árvore do jardim tentando imprimir luz às sombras que definem a nossa volta como um desenho de linhas grafitadas. Um voo de morcegos nos alcança perto da porta e o susto  se prolonga quando ela se abre e somos atropelados por um bando de porquinhos-da-índia em fuga. A mulher que nos recebe deve ter uns oitenta anos e aqui estamos nós, irreconhecíveis e não reconhecendo-a, estrangeiros e estranhos. Só o que notamos é a pobreza opressiva da velha senhora, a decadência do lar degradando-se na solidão que precede a morte, o cheiro desagradável deixado pelos bichos na sala vazia e escura.

No abandono da casa vazia de mobília, a sombra na parede poderia ser apenas uma projeção a mais na escuridão do aposento mas, pareceu-me ver o vulto de Atahualpa esticando o braço até muito alto na parede à frente, a mão se estendendo até onde sua altura podia alcançar.

A tradição chama esta casa de o quarto do resgate, que servira ao Inca Atahualpa, após sua captura, como moradia, e onde ele ofereceu a Pizarro a oferta para resgatar sua liberdade, enchendo-a com objetos de ouro, prata e joias, tão alto quanto ele pudesse alcançar com a mão. Certamente a casa era muito maior mas o quarto foi preservado como um marco, pois em nenhuma outra cidade no Peru os edifícios antigos, dos quais os cronistas deixaram descrições detalhadas, foram tão completamente extintos como em Cajamarca.  

De repente, damos um salto no tempo e o passado torna-se presente na sala escura. 

                                                            ************


Atahualpa esticou o braço, o mais alto que pôde, acima da cabeça, a mão alcançando muito além da sua altura. As palavras repercutiram nas paredes da sala vazia com algum eco. Tomaram tão grande promessa por loucura, pois parecia impossível de ser cumprida; mas, ele ratificava isso afirmando que, se mantivesse sua posição, cumpriria a promessa sem cautela ou fraude. Falava-se tanto de Cuzco e Pachacamac, deQuito, de Bilcas e outros lugares onde havia Templos do Sol que, por outro lado, parecia, para alguns dos cristãos, que Atahualpa poderia, de fato, dar o prometido e muito mais. Pizarro contou-lhe sobre isso, sobre a dúvida deles, mas Atahualpa esta convicto, seguro de sua promessa, com esperança de libertar-se.

Satisfeito com essa demonstração de confiança e esse acordo, Atahualpa despachou a todos os seus generais, às capitais das províncias e à cidade de Cuzco, comunicando o pacto que fizera por sua liberdade: um cômodo cheio de ouro e de prata, e que se recolhesse o que fosse necessário para cumprir suas ordens, trazendo tudo a Cajamarca, o mais rápido possível. Ordenando mais, que não fizessem guerra, nem causassem qualquer transtorno a eles, mas que os servissem e obedecessem como à sua própria pessoa, fornecendo-lhes comida e tudo o que eles pedissem e necessitassem.

Atahualpa estava sob pressão. A História e os historiadores são brandos ao descrever essa extorsão. 
E para que isso fosse realizado o mais rápido possível, pois tratava-se de grande quantidade, Atahualpa falou com Pizarro para que enviasse ao Cuzco dois ou três cristãos, no intuito de trazer o tesouro do Coricancha (6), os quais seriam levados em liteiras sobre ombros de homens, que os protegeriam e os trariam de volta sem qualquer transtorno ou ferimento. Desse modo, foram enviados três cristãos, Pedro de Moguer, Zárate e Martín Bueno, para irem, com gente de Atahualpa, ao Cuzco, a fim de recolher o tesouro do templo.

 
Na verdade. Atahualpa não sabia lidar com aquela situação porque, no Tahuantinsuyo (7), ninguém estava acostumado com a mentira, não havia mentira naquelas terras; pensou que a palavra daqueles homens estrangeiros valesse tanto quanto a sua ou a de qualquer outro homem simples do império. Desejava a liberdade e o que prometia, cumpriria. Pizarro, com a lábia espanhola, continuava a prometer, dando-lhe sua palavra, com a firmeza pedida por Atahualpa, de deixá-lo livre, como o era ao ser preso, se tanto ouro e prata, como prometido, fosse entregue por seu resgate.

Atahualpa recebera a notícia de que seu irmão fora preso com um sorriso triste. Riu de como o mundo não fazia sentido, pois em um mesmo dia encontrava-se vencedor e vencido. 
Quando Francisco Pizarro entrou na sala, Atahualpa o encarou com um resto desse sorriso triste estampado na face serena. Pizarro lhe disse palavras de consolo, que não tivesse pena, nem deixasse de comer; que tivesse o ânimo compatível com o grande senhor que era, pois o haveria de tratar como tal. Prometeu-lhe uma porção de coisas, segundo sua lábia espanhola. Atahualpa respirou, tranquilizando-se com as palavras de Pizarro, esforçando-se para entender a real intenção dos espanhóis. Encarou Pizarro, outra vez, ao pedir-lhe, olhando-o nos olhos, que gostaria que lhe dissesse quem eram eles, de que terra eles tinham vindo, se tinham Deus e rei.
Pizarro respondeu que eram cristãos, naturais da Espanha, um grande país, e que acreditavam e adoravam a Deus, onipotente em Cristo, criador do céu, do mar e da terra, com tudo o que há nela, e que se ele se tornasse cristão, recebendo a água do batismo, iria desfrutar do céu e da presença de Deus, caso contrário seria condenado como todos aqueles que morriam sem a luz da fé; disse-lhe, ainda, que eram vassalos do rei Carlos V, grandíssimo senhor.

Quando os espanhóis chegaram à cidade, Atahualpa havia deixado seus aposentos reais da casa de Cajamarca para ficar em Pultumarca, nas termas, onde havia outra casa real, perto de onde seu exército estava acampado.

Ao entrarem no vale, Pizarro e os seus haviam olhado, surpresos e atônitos, o acampamento do exército de Atahualpa: um mar de tendas que mais parecia uma cidade. Apesar de um  exército tão grande estar acampado em Cajamarca, era fantástico olhar para seus belos campos, encostas e vales bem plantados e lavrados; porque entre eles havia grande observância das leis de seus anciãos, que mandavam que comessem do que estava nos depósitos, sem destruir os campos. As aldeias eram muito bem organizadas;  roupas preciosas e outras riquezas, muitos rebanhos de ovelhas andinas. Os apartamentos reais eram cercados por uma muralha e havia, em um triângulo, uma grande praça. Não encontraram ninguém de importância; tão somente algumas mulheres, a maioria, mulheres idosas. Hospedaram-se de forma a estarem juntos, como era ordenado. Os habitantes pareciam estar contentes em tê-los por perto.
Entrementes, vinham trazendo o Inca Huascar como prisioneiro e, este, aproximando-se de Cajamarca, sabendo que Atahualpa estava em poder dos espanhóis e que, para que o libertassem, havia prometido encher um quarto de ouro e prata, fez grandes exclamações, pediu justiça a Deus, grande e poderoso, contra o traidor seu irmão, pois tanto dano e agravo havia feito a ele, dizendo mais, que se Atahualpa havia prometido um cômodo inteiro de ouro, ele daria dois aos cristãos, pessoas enviadas pela mão de Deus, pois haviam tido poder para, sendo tão poucos, prender a um tirano tão grande como era seu inimigo, o qual não poderia dar o que prometera, senão tirando dele, que era o senhor de tudo. 
Os incumbidos dele acordaram em ser leais a Atahualpa, traindo-o; não ficaram surpresos com um fato tão estranho; antes, decidiram enviar-lhe mensageiros, para que soubesse quão perto eles estavam e o que ele ordenava que fizessem, pois Huascar mostrava um extremo grau de desejo de ver-se em poder dos cristãos, seus inimigos.

Este mensageiro, ao chegar, conversou longamente com Atahualpa sobre essas coisas que, tão prudente e astuto como era, pareceu-lhe que não lhe convinha que seu irmão chegasse ou aparecesse diante dos cristãos, porque eles o considerariam, mais do que a ele, como senhor natural; mas não se atrevia a mandá-lo matar por medo de Pizarro, que muitas vezes lhe perguntara sobre ele; e para saber se sua morte lhe seria um peso ou se o constrangeria mandá-lo trazer vivo, fingiu estar com muito sentimento e dor, tanto que Pizarro quando soube veio consolá-lo, perguntando-lhe por que ele estava tão angustiado
Atahualpa, explicou-lhe que na época em que chegara a Cajamarca, com os cristãos, travava-se uma guerra entre os irmãos Huascar e ele, e que, depois de muitas batalhas entre eles,  estando em Cajamarca, seus capitães continuaram a guerrear e haviam capturado Huascar, a quem traziam até  onde ele estava sem tocar em sua pessoa, e que, vindo com ele, o haviam morto no caminho, segundo ficara sabendo, por isso estava tão zangado. Pizarro, acreditando que estaria falando a verdade, consolou-o, dizendo que não deveria receber punição, porque a guerra trazia consigo tais reveses; e, pela força, alguns deles deveriam ser mortos na guerra, outros presos e derrotados.

Atahualpa não quis ouvir mais do que ouvira, porque se Pizarro dissesse: "trága-me Huascar vivo sem lhe causar mal algum, porque suas notícias são mentiras", o teria mandado trazer a Cajamarca. Mas, como disse apenas o que ele queria ouvir, enviou o mesmo mensageiro de volta, a toda pressa, para dizer-lhes que o matassem logo e sumissem com o corpo.

Os homens do exército de Atahualpa vinham, já, mais aquém de Guamachuco, no que chamam de Andamarca, quando os que voltavam logo gritaram como Huáscar deveria morrer e ele ouviu, com grande temor e espanto; procurou, com palavras quase desesperadas que não o fizessem, fazendo grandes promessas, mas não bastou; porque Deus permitiu isso, só Ele sabe. Reclamava de seu irmão e sua crueldade, já que, sendo o soberano e verdadeiro Inca, Atahualpa o havia levado a tal estado; dizia que Deus, e os cristãos, haveriam de vingá-lo. Afogaram-no no próprio rio de Andamarca e o jogaram abaixo, sem dar-lhe sepultura, coisa lamentável para os incas, que acreditavam que os afogados e os queimados estão condenados e cada Inca deveria ter o corpo mumificado para continuar existindo no meio dos seus. Alguns dos que pertenciam à família de Huáscar cometeram suicídio para lhe fazer companhia.

¨Contam os índios, que ainda hoje estão vivos, de grandes coisas de sua bondade, como ele era clemente, dadivoso, não dado a tiranias ou roubos, mas em tudo amigo da verdade e justiça , tomando todas as coisas para o bem e não para o mal; e ainda assim ele morreu desastrosamente, como foi dito; e aquele que o mandou matar viveu pouco, como diremos, usando os cristãos com ele da mesma crueldade que ele usara com Huáscar, que foi o último rei dos Incas, e eles foram onze. E os índios dizem que reinaram quatrocentos e cinquenta anos no Peru.¨





(1) bombax discolor  

(2) Rua do Comércio

(3) parte transversal de uma igreja que se estende para fora da nave central, formando com esta uma cruz . 

(4) opuntia.  

(5) silhar: pedra lavrada que serve para revestimento de paredes . 

(6) Templo do Sol.  

 (7) Império Inca . 






3.08.2019

ESTRADA PARA VITCOS







Quando, em 1911, Hiram Bingham III (1) procurava a cidade de Vilcabamba, encontrou um sítio arqueológico que os habitantes locais chamam de Rosaspata. Com a ajuda das mesmas narrativas dos conquistadores que o haviam levado às ruínas, ele percebeu que estava realmente no palácio de Vitcos e no oráculo de Chuqipallta.
Após mapear superficialmente os sítios, ele continuou em busca de seu objetivo: encontrar o local da última capital inca. Sabendo mais ou menos onde, em relação a Vitcos, ele poderia encontrá-la, continuou no que acreditava ser, e na verdade era, o caminho para Vilcabamba. Desse modo, redescobriu e identificou corretamente tanto Vitcos quanto Vilcabamba.

Vitcos, localizada na colina  que domina sobre o vale de Vilcabamba, a uns dois mil e setecentos metros acima do nível do mar, com um clima temperado e pronunciadas estações de chuva e seca, e mais tarde Vilcabamba, abrigaram Manco Inca Yupanqui (Manco Capac II), Tupac Inca Sayri, Titu Cusi Yupanqui e Tupac Amaru I, todos herdeiros legítimos de Huayna Capac. Manco Inca iniciou negociações com os invasores espanhóis, rebelando-se mais tarde, e todos eles resistiram por mais de 40 anos nessas terras. A região, então, sofreu combates ferozes e a cidade de Vitcos acabou por ser destruída por volta de 1572, quando o último imperador inca, Túpac Amaru I, líder da resistência, foi preso e executado.


No ano de 1542, Manco Capac II tentava manter, como podia, em Vitcos e Vilcabamba, o que restara do império Inca. Naquela época, muitas lutas continuavam a acontecer como resultado da morte de Don Diego de Almagro. Determinados a vingar sua morte, o Capitão Joan de Herrada e outros amigos, conspiraram, na Ciudad de los Reyes (2), levando consigo o filho de Almagro, que tinha o mesmo nome do pai.
Movidos por sua interminável cobiça, foram à casa do Marquês Don Francisco Pizarro, mataram-no, e ao Capitão Francisco de Chaves, arrastando o corpo do Marquês pela praça. Assim terminava, de forma trágica, a vida daquele que, alguns anos atrás, havia ordenado a morte do Inca Atahualpa.
Muitas pessoas juntaram-se a eles, todas aquelas que antes haviam seguido Don Diego de Almagro, tomando seu filho como líder.

Quando Vaca de Castro chegou, enviado pelo Rei de Espanha, reuniu aos que eram leais ao serviço de seu rei, enfrentando Don Diego de Almagro, o moço, e seus soldados, em Chupas, a duas léguas de Guamanga. Alí, então, lutaram muito e foi desbaratado Don Diego de Almagro, que  fugiu para Cusco, onde foi preso, e teve a cabeça cortada por ordem de Vaca de Castro.

Sete companheiros (3) que haviam lutado ao lado dos almagristas, entre os quais Diego Mendez, o mestiço, Barba Briceño e Escalante, escaparam, fugindo, dessa batalha de Chupas, quando Don Diego fora desbaratado. Continuaram em fuga, cavalgando por vales e colinas, entrando pela estrada inca que atravessa a abundante vegetação do vale de Vilcabamba, cercado de belas paisagens cortadas pelas sonoras cascatas que quebram o silêncio nas íngremes ladeiras. Atravessaram o vale, observados pelas altas montanhas, os sagrados Apus. No lado norte, o Apu Wiracochan, ao sul o Apu Pumasillo, do lado leste o Apu Yanantin e a noroeste o Apu Izmaccoya. Sua intenção era a de refugiarem-se em Vilcabamba e, para isso, tinham de convencer Manco Capac, de que este tornaria a recuperar sua terra, vencendo, arrancando os espanhóis que estavam nela. 
Cavalgaram, subindo pelas baixas colinas, na direção das altas montanhas, alcançando desfiladeiros e pontes, seguindo em fila quando a estrada inca se estreitava, resvalando nas pedras da encosta, parando, às vezes para orientarem-se, pisando a grama que margeava a estrada, destroçando as flores singelas com as botas sujas de sangue. Os animais relinchavam arrancando a grama com os cascos, assustando-se com os imprevistos, erguendo-se nas patas, exigindo maior controle dos fugitivos. 
No lado norte da colina, avistaram Vitcos. Ao sul, a gigantesca pedra branca esculpida, a Yuraq Rumi (4), o altar sagrado que servia como lugar de culto e é a principal parte do complexo que abrange toda a serra e os vales ao sul e leste, uma série de terraços que se estendem ao longo do lado oriental da colina adentrando o vale. 
À primeira vista Vitcos pareceu muito adorável, destacando, na distância, a cor rosada das pedras do complexo de edifícios.
Viram o complexo crescer diante deles e temeram por suas vidas. No flanco leste da colina, mais de trinta edifícios e estruturas de engenharia entre Vitcos e Chuquipalta.  Na plataforma superior, quatorze recintos com quatro pequenas praças para o interior, moradias reais, templos, casas, terraços agrícolas. Ao norte desse setor, um grupo inferior de edifícios, com uma dúzia ou mais, dispostos em torno de um pátio aberto. Entre eles, casas de reunião (kalankas), vários armazéns (qollqa) e uma grande plataforma de observação religiosa (usnu), bem como terraços e trilhas construídas.

Foram recebidos na grande praça central de Vitcos, cercada por muitos edifícios reais. A imponente residência do Inca consistia em dois grupos de edifícios, em dois níveis, abrigando o templo e o palácio.

No grupo superior,  salas grandes, dispostas aos pares, uma de costas para a outra, unidas por uma parede externa comum. Cada par com um telhado comum e cada sala com três portas para o exterior da parede.
 
"Não havia janelas, mas estava iluminado por trinta portas, quinze na frente e o mesmo atrás. Continha dez grandes salas, além de três corredores conduzindo da frente para a retaguarda". Os lintéis eram feitos de bloco sólido de granito branco. Em frente ao longo palácio, uma estrutura de 78 pés de comprimento e 25 pés de largura, "contendo portas de ambos os lados, sem nichos e sem evidência de mão-de-obra cuidadosa." (5)


Nas palavras de Titu Cusi Ypanqui (6), filho de Manco Capac... 

"Depois da nossa chegada a Vitcos, uma cidade a trinta léguas de Cuzco, nós, que acompanhamos meu pai, fizemos uma pausa com a intenção de ficar e descansar por alguns dias. Meu pai mandou construir uma casa para seus aposentos, porque as casas que já estavam lá pertenciam aos meus antepassados ​​Pachacuti Inca, Topa Inca Yupanqui, Huayna Capac e outros, cujos corpos havíamos colocado lá. " 

 Manco Inca recebeu muito bem a esses soldados fugitivos. Eles lhe disseram que  muitos espanhóis viriam servi-lo e que, com a ajuda deles, tornaria a recuperar sua terra e venceria, arrancando os espanhóis que estavam nela. Disseram isso a Manco Capac, temendo que os mandasse matar e para lisonjeá-lo e obter sua gratidão. Quanto a Manco, dispensou-lhes um ótimo tratamento em tudo, sem a intenção de prejudicá-los, o que os tranquilizou, fazendo-os perder o medo.


Na verdade, Diego Mendez e seus companheiros só escaparam com vida porque foram acolhidos e amparados por Manco Inca que, ao invés de tratá-los como inimigos, dos quais tantos prejuízos havia recebido, acolheu-os, alimentando-os, mantendo-os em sua companhia, fazendo-lhes todo o bem possível. 
Manco Inca manteve-os junto de si, com excelente tratamento e cortesia. Em sua presença, mandava que fossem servidos à mesa, que lhes dessem de comer e beber abundantemente, obsequiando-os, fazendo-os sentirem-se como se estivessem em casa.


"Depois de haver deixado de fazer guerra, quieto com a miséria que acontecia em Viticos, vieram para esconder-se  sete homens dos que se encontravam  com Gonzalo Pizarro contra a serviço do Rei, e ele os tratou muito bem, obsequiando-os muito, e por ganância desta miséria que atualmente tenho, amotinaram-se e fizeram uma conspiração, e o mataram traiçoeiramente, e a mim deram-me um golpe de lança, e se eu não me jogasse alguns penhascos abaixo, também me teriam matado, e depois tivemos paz por alguns dias,..". (carta-memoria del Inca Titu Cusi Yupanqui, in Matienzo)

Depois da chegada dos conquistadores, a conspiração se espalhava como um cancro, lançando uns contra os outros...

"Passados alguns dias, Manco Ynga soube, através dos espiões que tinha, em Cuzco e em outros lugares, como um curaca chamado Sitiel, caçoando de Manco Ynga, na presença de muitos cristãos, disse a Caruarayco, chefe de Cotomarca: vamos prender Manco Ynga em Vilcabamba e Caruarayco será Ynga e Senhor, e todos nós o obedeceremos e Manco Ynga o servirá e conduzirá a tiana, que é o assento onde os chefes e principais se assentam. "(Murúa)

Ao saber disso, Manco sentiu-se muito magoado e imaginou como vingar-se daquela insolência que Sitiel fizera, tomando como grande afronta o atrevimento de seu súdito ao dizer tal coisa. Disse a Diego Mendez, e aos demais, que fossem prendê-los e eles disseram que sim, oferecendo-se com grande disposição para fazê-lo. De acordo com Murúa, Manco Inca mudou de ideia porque pensou que eles estavam muito cansados, com tudo o que lhes acontecera e decidiu enviar seus próprios homens, os mais corajosos, todos os capitães que estavam com ele e todos os seus próprios capitães, ficando com, apenas, quinhentos para sua guarda pessoal. Ordenou-lhes que fossem a toda pressa, agindo na surpresa, e tentassem trazer vivos Sitiel e Caruarayco. Desse modo, partiram os incas para cumprir sua ordem, prontamente.

"Ninguém há de negar quão feio e abominável vício seja o da ingratidão, porque fazer o bem a quem me fez mal é obra de cristão... "(Murúa)

"Já os espanhóis parece que estavam enfadados de tantos presentes e fartos de estarem ali, e quiseram voltar a Cuzco, aqui fora, e não sabiam como fazê-lo com segurança, para que a eles não prendesse Vaca de Castro, e combinaram, entre si, uma enorme traição. "(Murúa)

Conspiraram para matar Manco Inca e, assim, pudessem fugir incólumes,  pensando que, por aquele serviço tão notório, Vaca de Castro iria perdoá-los e fazer-lhes concessões porque, dessa forma, a terra seria pacificada. Diego Mendez o mestiço, decidiu matá-lo quando a  ocasião se apresentasse, antes que as pessoas que tinham ido prender Sitiel e Caruarayco voltassem, porque depois disso seria mais difícil, pois eram muitos os que estavam com Manco. Assim, buscaram a oportunidade para executar sua intenção infeliz.

Nas palavras de Murúa (*) ...

"Certo dia jogavam boliche (7) Manco Inca y Diego Méndez e, no jogo, Diego Méndez ganhou certa prata de Manco Inca, que logo foi paga e, tendo jogado por algum tempo, disse que não queria jogar mais, que estava cansado, e mandou que trouxessem um lanche, e quando o trouxeram, Manco Inca disse a Diego Méndez e aos outros: vamos comer, e eles responderam que sim, e se sentaram com muita alegria, e comeram o que haviam trazido, ali, com o Inca, o qual andava receoso dos espanhóis, porque os via andar cautelosos e portar armas, secretamente. Assim, teve um mal pressentimento de que lhe quisessem fazer alguma traição, pois estava com pouca companhia e, quando acabaram de comer, disse-lhes que fossem repousar, que ele queria se divertir com seus índios um pouco, e eles lhe disseram que logo iriam, e começaram os espanhóis a zombar uns dos outros, com palavras, brincando, para fazer Manco Inca rir, porque ele gostava quando eles se divertiam. Com isso, foram se entretendo, por algum tempo, até que Manco Inca, tendo bebido, levantou-se para dar bebida a seu guarda, porque é uso entre eles fazer essa honra a quem gostam muito e deu-lhe de beber. Estando parado, pois tinha lhe dado um copo para que bebesse, voltou-se para tomar outro copo, que segurava uma índia sua, atrás dele, para que Manco Inca bebesse. Nisso, Diego Méndez, que estava alerta para aproveitar o momento que se lhe oferecesse, como o viu virar as costas para eles, arremeteu-se contra ele com grande fúria e, com uma adaga, deu-lhe uma punhalada por trás, e Manco Inca caiu no chão, e logo Diego Méndez deu-lhe outras duas, e os índios que ali estavam, todos desarmados, perturbados pelo inesperado, lançaram-se para ajudar Manco Inca e defendê-lo, para que não o ferissem mais, e os outros espanhóis pegaram suas espadas e se lançaram, também, para livrar Diego Méndez e, apressadamente, correram aos seus alojamentos e selaram seus cavalos, e pegaram seus utensílios, que ali mantinham, carregando tudo o que possuíam, como a pressa o permitiu, tomando o caminho de Cusco, sem parar em parte alguma, e toda aquela noite caminharam, sem dormir, e como era montanha, não acertaram bem o caminho e andaram desorientados de uma parte a outra, perdidos,  e assim se detiveram." 

Em seguida, uma mensagem foi enviada aos capitães e aos homens de Manco Inca, que estavam em missão de prender Caruarayco e Sitiel. A mensagem contava sobre o que havia ocorrido em Vitcos, dizendo-lhes que Diego Méndez e os outros espanhóis haviam apunhalado o Inca, e que haviam fugido para Cusco; que deixassem tudo e voltassem para capturar os espanhóis antes que escapassem. Os que foram dizer isso toparam com eles no caminho, pois já estavam voltando, trazendo Caruarayco e Sitiel como prisioneiros. Os capitães e os outros, de cento em cento, os mais valentes e ligeiros, adiantaram-se, velozmente, e chegaram até onde estava Manco Capac, mortalmente ferido. Manco ainda estava vivo e como viram, assim, seu senhor, com desejo de vingá-lo, deram meia volta por onde sabiam que os espanhóis haviam seguido, e no outro dia os alcançaram. 
Eles haviam entrado em um grande galpão que existia no caminho e descansavam, descuidados, pensando que estavam seguros e a salvo.Os espanhóis estavam abrigados,  mantendo consigo seus cavalos, lá dentro, e os homens de Manco, por não querer atacá-los logo, para que, com o dia, não escapasse nenhum, esconderam-se no monte até que fosse noite fechada. Juntando bastante lenha foram até o galpão e o cercaram e puseram a lenha nas portas para que não pudessem sair e, com palha, atearam fogo. Os espanhóis se levantaram com o barulho e alguns quiseram sair, irrompendo em meio ao fogo, mas foram alvejados e, ali, com seus cavalos, foram queimados.

Então, os homens de Manco Inca voltaram para Vitcos. 

Murúa conta que, quando soube que todos os espanhóis já estavam mortos, o Inca ficou muito satisfeito, e disse-lhes para não chorar por ele; que as pessoas da terra não se inquietassem e fizessem um levante, e nomeou por herdeiro a um filho seu, o mais velho, ainda que pequeno, chamado Sayre Topa. E que, enquanto não tivesse idade para reger, os governasse Ato Supa, um capitão "orejón" do Cuzco que estava alí e que era homem de valor, de muita prudência e ânimo para a guerra. Disse-lhes que o obedecessem e que não desamparassem Vilcabamba, porque aquela terra a havia encontrado e fundado com tanto trabalho e suor, que para conquistá-la tantos haviam morrido, defendendo-a com valor.
Assim morreu Manco Inca Yupanqui, filho de Huayna  Capac, e embalsamaram seu corpo segundo seu costume, sem chorar nem dar mostras de tristeza, pelo que ele havia mandado, levando-o a Vilcabamba.

Recorri a Frei Martin de Murúa para tentar pincelar com palavras o cenário de uma época da História em que grandes embates dilaceravam os Andes; cores de um eterno pôr de sol vermelho-sangue refletindo-se nos ceques (8), na terra estriada de rasgos ensanguentados, como rastros.

"Este fim teve Manco Inga Yupanqui, filho de Huaina Capac, senhor universal deste reino, tendo, desde que deixou Cuzco, pelas humilhações e tirania de Hernando Pizarro e seus homens, passado inúmeros trabalhos e desventuras de um lado e de outro, seguido e perseguido pelos espanhóis, dos quais, vencido e vencendo, escapou milhões de vezes, tudo para preservar a sua liberdade, e o que, tantas vezes, o marquês Pizarro e seus irmãos, e outros capitães, não puderam fazer, com tantos soldados e índios amigos, acabou e concluiu Diego Mendez, mestiço a quem, e a seus comparsas, Manco Inga havia recolhido e protegido e feito o bem em sua casa, para que se veja até onde chega uma traição. "(Murúa)

No testemunho de Titu Cusi Yupanqui Inca, filho de Manco Inca, 8 de julho de 1567...

"E disse que pelos maus tratos que fizeram os cristãos a seu pai na época que chegaram à cidade de Cuzco os primeiros conquistadores, como foi Juan Pizarro, que prendeu a seu pai -- que era, então, obedecido como senhor temporal em toda a terra -- sob o pretexto que ele queria rebelar-se com todos os índios do reino, e pediu-lhe por resgate uma cabana* cheia de ouro e prata, e, sendo mentira, para redimir a humilhação, deu-lhe muitas cargas de ouro e prata, e com isso redimiu a humilhação. E então veio Gonzalo Pizarro por corregedor e o levou para a prisão que ele queria rebelar-se de novo, e pediu-lhe outra cabana cheia de ouro e prata e colocou-lhe uma corrente em torno de seu pescoço, e assim o levava pela cidade de Cusco diante de seus súditos, mulheres e filhos, com muitos insultos, e não tendo    [Mango Inga] o que dar para resgatar a humilhação, Hernando Pizarro chegou à cidade de Cuzco como corregedor e ordenou a libertação de seu pai, e depois de soltá-lo pedia-lhe um monte de ouro e prata, dizendo que era por tê-lo solto; e não tendo com que voltar a subornar ao dito Hernando Pizarro e temendo que o mandasse de volta para a cadeia e o molestasse, mandou chamar a todos os capitães e chefes do reino e depois de ter falado com eles se levantou contra o serviço de Sua Majestade na fortaleza de Cuzco, e cada um dos chefes em suas terras. E assim eles mataram muitos cristãos. "(Titu Cusi Yupanqui) (9)

A narração de Titu Cusi Yupanqui sobre tudo o que aconteceu com seu pai, Manco Inca, e com ele mesmo, naqueles fatídicos dias, nos quais os espanhóis "comiam ouro", é a nota triste, perpetuada pelas flautas, que contam, com os sons das montanhas, a tragédia dos Incas - aqueles que, de tão esquecidos, começam a ser considerados uma lenda. As palavras de Tito nos aproximam da verdade e da realidade de tudo o que aconteceu, e isso dói como as punhaladas no corpo do Inca. Não bastava a destruição, era necessário que o Sol fosse extinto (10).

"E em Pucará, em um alcance que lhe deram, tomaram uma irmã e esposa de seu pai, chamada Coya Cura Ocllo, a qual levaram a Tambo e ali atiraram nela. E por isso lutou com os espanhóis e matou muitos deles. Depois, retirou-se para a província de Vilcabamba onde, agora, tem o seu lugar principal assento o citado Inca  Titu Cusi Yupanqui. E que, depois, estando ali seu pai retirado, vieram seis espanhóis fugindo do Peru por terem se levantado com Don Diego de Almagro contra o serviço de Sua Majestade, e tendo lhes feito um tratamento muito bom, trataram de matá-lo traiçoeiramente, e assim deram-lhe dezoito golpes com espadas e facões e facas e tesouras; e ao citado Inca Titu Cusi Yupanqui, sendo um menino, lhe deram um golpe de lança nas costelas, e se não se deixasse cair por uns penhascos abaixo, também seria morto. Assim, morreu seu pai dos ferimentos que lhe deram, e os capitães mataram os espanhóis como dito anteriormente, e que por esses agravantes rebelou -se seu pai contra a obediência e domínio real de Sua Majestade. " (Carta-Memoria del Inca Titu Cusi Yupanqui al Lic. Matienzo, junio de 1565). 

"Na época em que os cristãos entraram nesta terra foi preso meu pai, Mango Inca, sob pretexto e acusação de que queria levantar-se com o reino, após a morte de Atahualpa, apenas a fim de que lhes desse uma cabana cheia de ouro e prata. Na prisão lhe fizeram um monte de maus tratos, tanto físicos como em forma de palavras, colocando uma coleira  em seu pescoço, como a um cão, enchendo de ferro seus pés, e trazendo-o pela coleira de lá para cá, entre seus súditos, interrogando-o a cada hora, mantendo-o na prisão mais de um mês, de onde, pelos maus tratos que a ele, a seus filhos, gente e mulheres, faziam, libertou-se da prisão e veio para Tambo, onde fez confederação com todos os chefes e principais de sua terra ". (11)

"...Foi preso meu pai Mango Inga...
 ... colocando-lhe uma coleira no pescoço, como um cão, e enchendo de ferro seus pés e trazendo-o pela coleira, pará lá e pará cá, entre seus súditos... "

(*) Fernando Montesinos, em Anales del Peru, conta uma outra versão da historia...

"... No ano de 1542 como da batalha de Chupas saíram fugindo oito pessoas, e entraram nos Andes. Um deles era Diego Méndez, irmão do Mestre de Campo Rodrigo  Orgóñes. Estes estiveram em companhia do Inga Mango em seu retiro até este momento. Havia mandado que fizessem umas argolas para que jogassem e entretinham-se com isso e a ensinar o Inga como (fazer) correr um cavalo e disparar um arcabúz (12). Como souberam que Gonzalo Pizarro ia contra o Vice-Rei escreveram a Antonio de Toro que conseguisse dele o perdão para sair de lá, e que o ajudariam no que fosse preciso. Respondeu-lhes, a Diego Mendez e Gomez Pérez, que matassem o Inca, que não só os perdoaria, mas que devolveria a Diego Méndez o Repartimiento de Asángaro que tinha antes. Pedia isso o Antonio de Toro, porque nos Andes tinha uma fazenda de coca que lhe dava cada mita mil pesos, eram três mitas e valiam mais de dez mil pesos por ano, e com a inquietação de Mango estava tudo suspenso e não se fazia nada, e pareceu-lhe que com a morte do Inga tudo voltaria a ser (como antes). Discutem o caso os oito soldados; pareceu-lhes bem a promessa; leram a carta diante de uma negra de Diego Méndez; esta avisou a um "orejón" com quem tratava, este, ao Inca, por três vezes, e não lhe deu crédito parecendo-lhe que a ingratidão não havia de vencer ao bom respeito e fiel amizade. Os castelhanos, vendo que em tanto tempo não havia esperança de que o Inga se convertesse e que a oportunidade de sair daquela solidão era boa, determinaram-se a matar o Inga. Armaram um jogo de argolas (13) na época em que havia enviado sua gente a campear e só ficaram com ele duzentos índios flecheiros dos Andes. Simularam uma diferença de qual argola estava mais perto; o Inga, como fizera outras vezes, aproximou-se do jogo, abaixou-se para medir as argolas; ao baixar-se, puxaram as adagas dos borzeguins (14) e deram ao gentil muitas punhaladas. Foram depressa até os cavalos do Inga para ir embora, e fugiriam, se um deles, chamado Barba, não tivesse ido até uns jarros de ouro que tinha uma índia amiga do Inga: esta gritou, vendo o trágico acontecimento; acudiram os índios Andes e flecharam e mataram aos oito soldados, tiraram-lhes as cabeças, colocaram-nas junto ao Inga que ainda não havia expirado; em em três dias que viveu, nomeou por seu herdeiro no Império ao filho que tivesse sua mulher e irmã Coya Curi Ocllo,
 e se fosse menina, nomeava como Inga a Saire Topa, seu filho. " (Framentó Instórico. Capitulo 141,) 


Havia uma rede de largas estradas que cruzava o império, interligando as regiões. Além dessas estradas maiores, que chegavam a trechos de até cinco metros de largura, havia estradas não tão largas mas, não menos importantes, outras menores ainda e pequenas trilhas interligando tudo. Algumas delas conduziam a Vitcos. A principal era uma larga estrada, ao norte do rio Vilcabamba que, vindo desde o sul, desde Cusco, seguia até Ollantaytambo, daí até Panticolla, indo até a ponte Chuquichaca. Esta certamente seria a favorita para ir de Cusco a Vitcos e voltar. 

Um misto de sentimentos de dor e alegria, vitória e derrota conduz o olhar até a fortaleza de Ollantaytambo, onde Manco Inca derrotou Hernando Pizarro em 1536. Vamos assolados pela visão dos blocos de riolito, as pedras poligonais finamente cortadas, iluminadas à luz do amanhecer enquanto cavalgamos contra o tempo, imprimindo no espaço a impressão das ferraduras na estrada pavimentada de pedras antigas. Apenas as pedras resistem, insistem; incertezas não são mais do que pequenas peças de um quebra-cabeça que se vai formando com retalhos de um antigo sonho. A arquitetura inca como única certeza, seus enormes blocos trabalhados de até cem toneladas, extraídos de locais impossíveis, mil metros ou mais acima do vale, cortados como se fossem de barro, derrapando abaixo, atravessando o rio, subindo até o local das construções.

Um runa (15) me disse que seu pai lhe disse que o seu avô contou que o pai contou a ele que o Inca cortava as pedras; que o Inca era muito forte e muito poderoso; ele era Filho do Sol.

                                                                ***

(1) Bingham, Hiram (1952). Lost city of the Incas. p.149. 

(2) Lima.

(3) Murúa numera treze, Montesinos oito.


(4) É um sítio arqueológico no Peru, localizado na região de Cusco, na província de La Convención, distrito de Vilcabamba. Yuraq Rumi, em um sentido mais restrito, é o nome de uma rocha esculpida no local, também conhecida como Pedra Branca. (Ñust'a Hisp'ana, Chuqip'allta ou Chuquipalta).

(5)  Bingham, Hiram (1952). Lost city of the Incas. p.149.

(6) Titu Cusi Yupanqui, Um relato inca da conquista do Peru.

(7) "Bolos" era um jogo que consistia em derrubar, por parte de cada jogador, o maior número possível de "bolos" ou "pinos" lançando uma bola ou peça, geralmente de madeira. 

(8) Ceques  eram linhas ou raios que, partindo da cidade de Cuzco, serviam para organizar os santuários (huacas) circundantes, formando um complexo sistema espacial religioso, conferindo à capital do Tahuantinsuyo um caráter eminentemente sagrado; vetores que emanam do templo de Coricancha para todo o Império Inca.


(9) CAPA INGA TITO CUXI YUPANGUI DOC. 52

(10) os Incas eram os Filhos do Sol.

(11) O Inca, Titu Cusi Yupanqui, filho de Manco Inca, assinou em 26 de agosto de 1566 a "capitulação de Acobamba" tratado de paz que estipulou a "vassalagem" de Titu Cusi e instalação de um corregedor em Vilcabamba: Diego Rodriguez de Figueroa. Para apreciar ante o Rei da Espanha os direitos de sucessão de Titu Cusi Yupanqui e seus descendentes, Diego Rodriguez procedeu, em 08 de julho de 1567, a recolher "informação" com os testemunhos do Inca e alguns de seus dignitários e pessoas próximas.

(12) arcabuz: antiga arma de fogo, portátil, de cano curto e largo que, em sua origem, era disparada quando apoiada em uma forquilha.

(13) herrón (herrones) - Antigo jogo que consistia em enfiar, em um prego fincado no solo, uns discos de ferro com um furo no centro.

(14) botas de soldado







BIBLIOGRAFIA


1) Titu Cusi Yupanqui, 2005, Um relato inca da conquista do Peru 

2)  (Carta-Memoria del Inca Titu Cusi Yupanqui al Lic. Matienzo, junio de 1565).


3) CAPA INGA TITO CUSI YUPANGUI (DOC. 52: TESTIMONIO DEL INCA TITU CUSÍ YUPANQUI, 8 DE JULIO DE 1567).


4) Fray Martín de Murúa, Historia General del Peru.


5) Fernando Montesinos, Anales del Peru.


6) Juan de Matienzo, Gobierno del Peru.


7) Bingham, Hiram (1952). Lost city of the Incas. p.149.

8) Juegos infantiles tradicionales en el Perú. Emilia Romero. Folklore Americano, Lima; Perú.



Para os textos originais em espanhol leia aqui mesmo, no blog: