4.17.2019

CAMINHO PARA CAJAMARCA - UMA VIAGEM NO TEMPO








Assim que deixamos a planície, entramos em um vale estreito, praticamente não cultivado, densamente coberto de algarrobos, huarangos de espinhos longos e outros arbustos. 
Atravessando um vale cheio de sombras e muito agradável, passando por entre moitas de salgueiro, juncos e trepadeiras, e algum incomodo por causa dos espinhos afiados das árvores de huarango.
O pôr do sol há de flechar um raio vermelho no junco do telhado da cabana, desenhada na parede da montanha, acima do chão do vale, mas o amanhecer ainda inunda as massas de rocha, desenrolando luz através das gargantas íngremes nas bordas.
A vegetação, esparsa nas partes mais baixas do vale, com seus traços bem definidos de cactos solitários e arbustos de mimosas, torna-se cada vez mais densa e diversificada, e a chuva que caíra, abundantemente, não só derrubara encostas como recriara esteiras de grama exuberante e áreas de flores coloridas e perfumadas, alternando arbustos de verdes contrastantes.
 Mais acima, nas paredes da montanha, as primeiras árvores pati (1),  
tão comuns no interior do vale, com seus caules curtos e grossos, a casca branco-acinzentada de ramos volumosos,  extremidades revestidas de aglomerados de grandes folhas lobadas em forma de estrela. À sombra da montanha, dispersos e desprotegidos, numerosos rebanhos de pacos pastam; um grande número de animais jovens e saudáveis. No topo, nós descansamos um pouco, na grama, debaixo de uma árvore poderosa, apreciando a belíssima paisagem desenhar-se diante de nossos olhos.

Atrás de nós, as montanhas rochosas que, do vale, pareciam tão altas e que, agora, vemos tão de perto, tendo, diante de nós, a Cordilheira de Cajamarca, toda vestida, em suas alturas até o cume, de verdes escuros e perfumados.

A descida é mais longa e árdua do que a subida, porque o caminho serpenteia por horas, subindo e descendo ao redor da parede da montanha. Em uma ravina, uma manada de guanacos que, assustados com nossa presença, fogem ao nos aproximarmos. Ao meio-dia o caminho, finalmente, desce, outra vez, para o vale. Cruzamos o rio em uma ponte mais ou menos preservada e voltamos para a outra margem. O caminho continua no vale e segue a estrada através de moitas de junco e encostas cobertas de flores; aglomerados de arbustos na vegetação rasteira. Continuamos, à esquerda, onde o caminho nos leva a uma outra colina. Lá em baixo, os telhados de palha das cabanas de uma aldeia singela, paredes caiadas de branco em meio a campos, jardins e mais campos de verde frescor. Ainda teremos de percorrer trinta quilômetros até Cajamarca. O pasto gramado que se deixa cortar, aqui e ali, por densos arbustos, onde as sebes se  redesenham cobertas de flores magníficas, nos situa a quase dois mil e trezentos metros de altura. O caminho sobre o desfiladeiro, íngreme em alguns poucos lugares, chão de barro vermelho ainda um pouco escorregadio por causa da recente estação das chuvas. Aproximando-nos do desfiladeiro, as encostas cobertas de grama se elevam suavemente e, ao chegarmos perto da passagem, as pedras verticais se desalinham estranhamente em formas distintas, uma forma maciça à esquerda, todas elas de tufo vulcânico quebrando as montanhas de ardósia. A pouca distância, em ambos os lados, depósitos de calcário, erigidos verticalmente, formam as paredes do vale que escalamos. Atravessamos o desfiladeiro Paso de la Cumbre  e nossos olhos são assolados pela visão de um amplo vale de lagoas e as casas de Cajamarca logo abaixo de nós.
A visão da planície e a fileira ascendente de elevações atrás dela é de surpreendente beleza. Essas montanhas sobrenaturais, que separam o vale de Cajamarca do Marañon, parecem ser mais altas que a cadeia costeira na qual ela se encontra, mas sobem muito gradualmente, permeadas por uma série de vales graciosos. A estação das chuvas foi embora, depois de tornar tudo em verdejante aquarela; a passagem, as encostas que se seguem a ela.  A descida do desfiladeiro não é íngreme, mas acidentada, cercada por muitos pedaços de tufos.
Imediatamente ao pé de uma colina, encostada na vertente oriental da Cordilheira dos Andes, à beira de uma planície de frente para o norte, situa-se Cajamarca.

Os Andes em Cajamarca estendem uma ramificação de morros muito altos na direção do Maranón, correndo paralela ao rio Cajamarca, que se une ao Huamachuco, para formar o Crisnejas, grande afluente do mesmo Marañon. Uma outra ramificação se estende dos Andes de Cajamarca em direção à Costa, dividindo as águas dos rios Jequetepeque e Chicama. Além disso, uma série de correntes de água que, influenciadas pela gravidade, movem-se no declive do terreno, colina abaixo, variantes em volume, gradiente de fluxo, e geometria dos canais; todas pertencentes aos afluentes de todos esses rios.

Chegamos no início da tarde.

Caminhamos pela cidade e as ruas estão, como em todas as cidades coloniais espanholas, regularmente dispostas, exatamente como foram projetadas, cruzando-se em ângulos retos, nove correndo paralelas entre si, horizontalmente, na direção do vale, do noroeste ao sudeste, dezesseis cruzando-as na direção da colina e, portanto, subindo. Quase no meio da cidade há um grande espaço quadrangular, maior que o da Praça principal em Lima, a quase três mil metros acima do nível do mar. A partir da praça, a rua principal corre para oeste, a Calle del Comercio (2), chamada rua do comércio porque a maioria das lojas e bares estão, aí, localizadas. Das melhores casas, algumas são espaçosas e construídas em estilo clássico espanhol, com quintal e varandas, a maioria é pequena e tem apenas um andar térreo. Todos os telhados são cobertos com telhas grandes e espessas que se projetam para muito além das paredes, apenas para protegê-las da chuva e do sol.

A cidade tem muitas igrejas, todas construídas em rocha sólida e, algumas, ricamente decoradas com esculturas. De acordo com o testemunho dos antigos cronistas, os espanhóis encontraram em Cajamarca consideráveis ​​edifícios reais, dos quais não resta mais nada, sendo que as pedras foram usadas mais tarde para construir essas mesmas igrejas. As casas particulares são quase todas feitas do pior adobe, construídas com muita pedra de argila impura, embora no tufo vulcânico um bloco de construção muito útil estivesse à mão.
Entre as igrejas, três são decoradas com fachadas ornamentadas: Santa Catalina, São Francisco e Belém, mas todas as três estão inacabadas. De fato, de todas as igrejas da cidade, nenhuma foi desenvolvida em suas partes superiores, talvez pelo fato de que a grandeza de seus sonhos fosse demasiada para os meios financeiros dos habitantes, talvez porque o grande zelo religioso do início tenha arrefecido mais tarde.

Santa Catalina, a catedral, ergue-se no lado oeste da praça principal, a Praça das Armas onde, há quinhentos anos, Atahualpa foi executado. A partir da praça, três grandes portais, correspondentes às três naves, conduzem ao interior da paróquia.

Os arcos, decorados com rosetas, os pilares entre eles carregando capitéis coríntios e os eixos  entrelaçados com guirlandas de folhas de videira.
Os três andares, nos quais a fachada deveria ser dividida, foram levados até uma certa altura, concluídos apenas nas peças do meio. De ambos os lados as torres se erguem, mas tudo foi interrompido antes que o segundo andar fosse terminado, e não há sinos pendurados nos arcos que deveriam ser janelas. As naves do interior são arqueadas e executadas em belas proporções, mas a decoração dos altares e do coro é discreta e insípida.

No lado leste da praça, larga e sem pavimento, no meio da qual se ergue uma fonte singela, está o mosteiro franciscano. A entrada para a igreja do mesmo não abre imediatamente após o local, mas em um pequeno jardim, cercado por um muro dando para a rua. O jardim é plantado com roseiras sombreadas por altos salgueiros.
Três pequenas aleias levam aos portais, de modo que as formas delicadas dos mesmos estão parcialmente cobertas pela folhagem, o que aumenta a impressão agradável do todo. A fachada da igreja é semelhante à de Santa Catalina em suas construções e, como esta, é completada apenas em sua peça central, mas o interior da igreja está inteiramente ocupado.
A abóbada é mais alta, os corredores mais espaçosos, uma cúpula nobre se eleva acima da cruz e cúpulas menores sobre os cinco arcos através dos quais os corredores se conectam com a nave central. Os adornos do interior estão de acordo com as belas condições do edifício. O altar principal, assim como os de ambos os lados do transepto  (3) são novos, enquanto os mais antigos têm colunas retorcidas e adornos peculiares do século anterior.
No entanto, todos eles têm um trabalho melhor do que a igreja paroquial e, em todos os aspectos, São Francisco é a mais bela da cidade.

Os cômodos internos do mosteiro são muito mais simples do que se espera dos móveis da igreja, e estão de acordo com as estritas regras dos monges que os habitam. 
Nem mesmo a quadra principal é cercada por claustros abobadados, mas por um telhado de proteção, apoiado em troncos ásperos, sob o qual as entradas para as células estão localizadas.
Além de dois pátios, o retiro encerra um jardim com eucaliptos, no qual estão as ruínas de uma igreja, inspirada nos novos edifícios; acredita-se ser esta capela a mais antiga de Cajamarca.

A melhor vista da cidade é a da colina chamada Santa Apolônia, que se eleva oitenta metros acima da praça principal. Consiste em um núcleo de tufo vulcânico esbranquiçado, coberto de terra, pedregulho e grama curta, sebes de agaves e moitas de grandes cactos espinhosos (4). A parte da frente do cume, que se inclina para trás contra a parede da montanha da Cordilheira, é de sessenta passos de comprimento, e metade da largura, de um pasto coberto de grama, onde as ruínas de uma capela podem ser observadas; paredes de grandes adobes meio desmoronadas. Restos de edifícios antigos já não podem ser encontrados, embora antigamente tivesse existido no morro uma fortaleza. De costas para o vale, a poucos metros abaixo do cume, na borda leste do morro, um assento meio redondo, o chamado assento real, la silla del Inca, rumi tiana, esculpido nas rochas de tufo. A duas jardas de distância, na superfície superior da mesma rocha, vê-se a borda de um segundo quadrado de pedra, igualmente semicircular, um pouco menor que o primeiro. Esta borda é quebrada por um barranco, que tem duas pequenas cavidades, que se comunicam, na superfície da pedra. 
Ambos os assentos semicirculares podem ser encontrados em um pedaço de rocha de três lados, na borda do qual degraus foram esculpidos, cujos restos ainda são claramente reconhecíveis. A visão predominante, em Cajamarca, que descreve a sede descrita acima como a cadeira do rei, a cadeira do trono, que o Inca costumava tomar em ocasiões solenes, parece basear-se em uma lenda.

Descemos para a cidade e seguimos pela rua que leva da praça para o lado do mosteiro de São Francisco. Entramos por  uma porta antiga e frágil para um pequeno pátio de aparência desolada, cercado de muros de barro meio desmoronados, e nos deparamos com a estrutura digna do que restou da glória do passado Inca em Cajamarca. O único vestígio de construção Inca na cidade, edificado em pedra, as paredes ligeiramente inclinadas para dar a forma trapezoidal característica dessa arquitetura. Para onde terá ido o ouro que teria enchido a casa uma vez, há quinhentos anos atrás, em troca da liberdade de seu senhor; onde foi parar a prata que teria enchido a casa duas vezes, para o cumprimento do mesmo acordo? Onde teria ido parar os sons das palavras de Atahualpa, pronunciadas contra o vento gelado que soprava dos Andes, resvalando nas paredes nuas, antes de morrer em sua garganta, e que ainda tentam nos manter como testemunhas dentro das antigas promessas?
Observamos melhor a casa a partir de um jardim adjacente a ela. 
A aprazível morada de Atahualpa está reduzida a um retângulo, cujo lado mais comprido tem dezessete passos voltados para o pátio, enquanto o mais curto mede apenas treze. O resto há de ter sido transformado em igrejas e em tumbas dentro delas.
As paredes do que restou da residência  do Inca, que na época ostentava a liberdade com suas janelas e portas sempre abertas, devassadas pelo Sol, agora repousam sobre o solo rochoso de tufo vulcânico e consistem, em sua parte inferior, de silhares (5) do mesmo material, exatamente de acordo com os apartamentos reais em Huánuco, e outros lugares, cujas ruínas ainda persistem, montadas com precisão e sem argamassa visível. As pedras são quadrangulares, tão altas quanto largas, mas nem todas completamente perpendiculares e nem mesmo colocadas em fileiras bem retas. Na parede da frente foi acrescentada uma margem, a doze pés de altura, seguida mais acima por uma sequência de adobe e uma cobertura simples de telhas antigas.
Devido à condição friável do tufo, a junção não é tão estreita e linear como em Huánuco ou as encontradas nos edifícios em Cusco. 
Diante da casa, quatro colunas de madeira mantém um curto telhado de proteção, sob o qual a entrada está localizada. Embora a porta seja nova, a entrada tem estado lá desde os tempos antigos, três degraus esculpidos na rocha levam à plataforma baixa que se estende sob esse abrigo na frente da casa.
A lua ensaia um brilho acima da árvore do jardim tentando imprimir luz às sombras que definem a nossa volta como um desenho de linhas grafitadas. Um voo de morcegos nos alcança perto da porta e o susto  se prolonga quando ela se abre e somos atropelados por um bando de porquinhos-da-índia em fuga. A mulher que nos recebe deve ter uns oitenta anos e aqui estamos nós, irreconhecíveis e não reconhecendo-a, estrangeiros e estranhos. Só o que notamos é a pobreza opressiva da velha senhora, a decadência do lar degradando-se na solidão que precede a morte, o cheiro desagradável deixado pelos bichos na sala vazia e escura.

No abandono da casa vazia de mobília, a sombra na parede poderia ser apenas uma projeção a mais na escuridão do aposento mas, pareceu-me ver o vulto de Atahualpa esticando o braço até muito alto na parede à frente, a mão se estendendo até onde sua altura podia alcançar.

A tradição chama esta casa de o quarto do resgate, que servira ao Inca Atahualpa, após sua captura, como moradia, e onde ele ofereceu a Pizarro a oferta para resgatar sua liberdade, enchendo-a com objetos de ouro, prata e joias, tão alto quanto ele pudesse alcançar com a mão. Certamente a casa era muito maior mas o quarto foi preservado como um marco, pois em nenhuma outra cidade no Peru os edifícios antigos, dos quais os cronistas deixaram descrições detalhadas, foram tão completamente extintos como em Cajamarca.  

De repente, damos um salto no tempo e o passado torna-se presente na sala escura. 

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Atahualpa esticou o braço, o mais alto que pôde, acima da cabeça, a mão alcançando muito além da sua altura. As palavras repercutiram nas paredes da sala vazia com algum eco. Tomaram tão grande promessa por loucura, pois parecia impossível de ser cumprida; mas, ele ratificava isso afirmando que, se mantivesse sua posição, cumpriria a promessa sem cautela ou fraude. Falava-se tanto de Cuzco e Pachacamac, deQuito, de Bilcas e outros lugares onde havia Templos do Sol que, por outro lado, parecia, para alguns dos cristãos, que Atahualpa poderia, de fato, dar o prometido e muito mais. Pizarro contou-lhe sobre isso, sobre a dúvida deles, mas Atahualpa esta convicto, seguro de sua promessa, com esperança de libertar-se.

Satisfeito com essa demonstração de confiança e esse acordo, Atahualpa despachou a todos os seus generais, às capitais das províncias e à cidade de Cuzco, comunicando o pacto que fizera por sua liberdade: um cômodo cheio de ouro e de prata, e que se recolhesse o que fosse necessário para cumprir suas ordens, trazendo tudo a Cajamarca, o mais rápido possível. Ordenando mais, que não fizessem guerra, nem causassem qualquer transtorno a eles, mas que os servissem e obedecessem como à sua própria pessoa, fornecendo-lhes comida e tudo o que eles pedissem e necessitassem.

Atahualpa estava sob pressão. A História e os historiadores são brandos ao descrever essa extorsão. 
E para que isso fosse realizado o mais rápido possível, pois tratava-se de grande quantidade, Atahualpa falou com Pizarro para que enviasse ao Cuzco dois ou três cristãos, no intuito de trazer o tesouro do Coricancha (6), os quais seriam levados em liteiras sobre ombros de homens, que os protegeriam e os trariam de volta sem qualquer transtorno ou ferimento. Desse modo, foram enviados três cristãos, Pedro de Moguer, Zárate e Martín Bueno, para irem, com gente de Atahualpa, ao Cuzco, a fim de recolher o tesouro do templo.

 
Na verdade. Atahualpa não sabia lidar com aquela situação porque, no Tahuantinsuyo (7), ninguém estava acostumado com a mentira, não havia mentira naquelas terras; pensou que a palavra daqueles homens estrangeiros valesse tanto quanto a sua ou a de qualquer outro homem simples do império. Desejava a liberdade e o que prometia, cumpriria. Pizarro, com a lábia espanhola, continuava a prometer, dando-lhe sua palavra, com a firmeza pedida por Atahualpa, de deixá-lo livre, como o era ao ser preso, se tanto ouro e prata, como prometido, fosse entregue por seu resgate.

Atahualpa recebera a notícia de que seu irmão fora preso com um sorriso triste. Riu de como o mundo não fazia sentido, pois em um mesmo dia encontrava-se vencedor e vencido. 
Quando Francisco Pizarro entrou na sala, Atahualpa o encarou com um resto desse sorriso triste estampado na face serena. Pizarro lhe disse palavras de consolo, que não tivesse pena, nem deixasse de comer; que tivesse o ânimo compatível com o grande senhor que era, pois o haveria de tratar como tal. Prometeu-lhe uma porção de coisas, segundo sua lábia espanhola. Atahualpa respirou, tranquilizando-se com as palavras de Pizarro, esforçando-se para entender a real intenção dos espanhóis. Encarou Pizarro, outra vez, ao pedir-lhe, olhando-o nos olhos, que gostaria que lhe dissesse quem eram eles, de que terra eles tinham vindo, se tinham Deus e rei.
Pizarro respondeu que eram cristãos, naturais da Espanha, um grande país, e que acreditavam e adoravam a Deus, onipotente em Cristo, criador do céu, do mar e da terra, com tudo o que há nela, e que se ele se tornasse cristão, recebendo a água do batismo, iria desfrutar do céu e da presença de Deus, caso contrário seria condenado como todos aqueles que morriam sem a luz da fé; disse-lhe, ainda, que eram vassalos do rei Carlos V, grandíssimo senhor.

Quando os espanhóis chegaram à cidade, Atahualpa havia deixado seus aposentos reais da casa de Cajamarca para ficar em Pultumarca, nas termas, onde havia outra casa real, perto de onde seu exército estava acampado.

Ao entrarem no vale, Pizarro e os seus haviam olhado, surpresos e atônitos, o acampamento do exército de Atahualpa: um mar de tendas que mais parecia uma cidade. Apesar de um  exército tão grande estar acampado em Cajamarca, era fantástico olhar para seus belos campos, encostas e vales bem plantados e lavrados; porque entre eles havia grande observância das leis de seus anciãos, que mandavam que comessem do que estava nos depósitos, sem destruir os campos. As aldeias eram muito bem organizadas;  roupas preciosas e outras riquezas, muitos rebanhos de ovelhas andinas. Os apartamentos reais eram cercados por uma muralha e havia, em um triângulo, uma grande praça. Não encontraram ninguém de importância; tão somente algumas mulheres, a maioria, mulheres idosas. Hospedaram-se de forma a estarem juntos, como era ordenado. Os habitantes pareciam estar contentes em tê-los por perto.
Entrementes, vinham trazendo o Inca Huascar como prisioneiro e, este, aproximando-se de Cajamarca, sabendo que Atahualpa estava em poder dos espanhóis e que, para que o libertassem, havia prometido encher um quarto de ouro e prata, fez grandes exclamações, pediu justiça a Deus, grande e poderoso, contra o traidor seu irmão, pois tanto dano e agravo havia feito a ele, dizendo mais, que se Atahualpa havia prometido um cômodo inteiro de ouro, ele daria dois aos cristãos, pessoas enviadas pela mão de Deus, pois haviam tido poder para, sendo tão poucos, prender a um tirano tão grande como era seu inimigo, o qual não poderia dar o que prometera, senão tirando dele, que era o senhor de tudo. 
Os incumbidos dele acordaram em ser leais a Atahualpa, traindo-o; não ficaram surpresos com um fato tão estranho; antes, decidiram enviar-lhe mensageiros, para que soubesse quão perto eles estavam e o que ele ordenava que fizessem, pois Huascar mostrava um extremo grau de desejo de ver-se em poder dos cristãos, seus inimigos.

Este mensageiro, ao chegar, conversou longamente com Atahualpa sobre essas coisas que, tão prudente e astuto como era, pareceu-lhe que não lhe convinha que seu irmão chegasse ou aparecesse diante dos cristãos, porque eles o considerariam, mais do que a ele, como senhor natural; mas não se atrevia a mandá-lo matar por medo de Pizarro, que muitas vezes lhe perguntara sobre ele; e para saber se sua morte lhe seria um peso ou se o constrangeria mandá-lo trazer vivo, fingiu estar com muito sentimento e dor, tanto que Pizarro quando soube veio consolá-lo, perguntando-lhe por que ele estava tão angustiado
Atahualpa, explicou-lhe que na época em que chegara a Cajamarca, com os cristãos, travava-se uma guerra entre os irmãos Huascar e ele, e que, depois de muitas batalhas entre eles,  estando em Cajamarca, seus capitães continuaram a guerrear e haviam capturado Huascar, a quem traziam até  onde ele estava sem tocar em sua pessoa, e que, vindo com ele, o haviam morto no caminho, segundo ficara sabendo, por isso estava tão zangado. Pizarro, acreditando que estaria falando a verdade, consolou-o, dizendo que não deveria receber punição, porque a guerra trazia consigo tais reveses; e, pela força, alguns deles deveriam ser mortos na guerra, outros presos e derrotados.

Atahualpa não quis ouvir mais do que ouvira, porque se Pizarro dissesse: "trága-me Huascar vivo sem lhe causar mal algum, porque suas notícias são mentiras", o teria mandado trazer a Cajamarca. Mas, como disse apenas o que ele queria ouvir, enviou o mesmo mensageiro de volta, a toda pressa, para dizer-lhes que o matassem logo e sumissem com o corpo.

Os homens do exército de Atahualpa vinham, já, mais aquém de Guamachuco, no que chamam de Andamarca, quando os que voltavam logo gritaram como Huáscar deveria morrer e ele ouviu, com grande temor e espanto; procurou, com palavras quase desesperadas que não o fizessem, fazendo grandes promessas, mas não bastou; porque Deus permitiu isso, só Ele sabe. Reclamava de seu irmão e sua crueldade, já que, sendo o soberano e verdadeiro Inca, Atahualpa o havia levado a tal estado; dizia que Deus, e os cristãos, haveriam de vingá-lo. Afogaram-no no próprio rio de Andamarca e o jogaram abaixo, sem dar-lhe sepultura, coisa lamentável para os incas, que acreditavam que os afogados e os queimados estão condenados e cada Inca deveria ter o corpo mumificado para continuar existindo no meio dos seus. Alguns dos que pertenciam à família de Huáscar cometeram suicídio para lhe fazer companhia.

¨Contam os índios, que ainda hoje estão vivos, de grandes coisas de sua bondade, como ele era clemente, dadivoso, não dado a tiranias ou roubos, mas em tudo amigo da verdade e justiça , tomando todas as coisas para o bem e não para o mal; e ainda assim ele morreu desastrosamente, como foi dito; e aquele que o mandou matar viveu pouco, como diremos, usando os cristãos com ele da mesma crueldade que ele usara com Huáscar, que foi o último rei dos Incas, e eles foram onze. E os índios dizem que reinaram quatrocentos e cinquenta anos no Peru.¨





(1) bombax discolor  

(2) Rua do Comércio

(3) parte transversal de uma igreja que se estende para fora da nave central, formando com esta uma cruz . 

(4) opuntia.  

(5) silhar: pedra lavrada que serve para revestimento de paredes . 

(6) Templo do Sol.  

 (7) Império Inca .