4.12.2024

A última Coya.

 






Um orvalho pesado havia caído e meus pés resvalaram as sandálias na grama molhada, meus olhos fixaram-se no chão matizado com o verde desbotado da inacessível distância. O cenário tenta delimitar a grama com enormes construções feitas de pedra por mãos humanas, galhos compridos e flexíveis de certos arbustos e plantas trepadeiras, dobrados até atingirem o chão, e trepadeiras que utilizam outras árvores e suportes para crescer até grandes alturas, pedras polidas e rochas do  Qhapaq Ñan (2) e outras estradas incaicas, enormes troncos de árvores nas encostas adjacentes, um grande número de plantas rasteiras.
 Um olhar selvagem da natureza tenta nos tornar menores, menores do que menores, pequenos demais sob a cúpula das últimas estrelas e um primeiro raio de Sol.
Quando eu piso a grama, eu a abençoo, meu jeito de amá-la, pois sei o quanto ela é importante para todos nós; tentando não me sentir culpada por pisar nela sem pedir, impondo minha presença.
A paisagem está brilhando prata nas lâminas da grama, cobertas de orvalho, tocadas pelos primeiros raios do sol nascente, estendendo um canteiro de flores minúsculas, sobrepujadas pelas maiores, no contexto. Alguns passos me levam além, o olhar encontrando as faces mal reveladas dos Apus distantes, velados pela eterna névoa de nossas montanhas.
A grama tem estado aqui por tanto tempo, muito muito mais do que eu, no meu frágil direito de possuí-la, assim como a tudo possuo agora. Eu sei que ninguém pensa como eu; eu sei que eu penso assim porque é meu dever compreender a mim mesma para poder entender como tudo é perfeitamente organizado em nosso reino, assim como em nosso kay pacha (1). O Sol espera coisas de mim, assim como espera coisas da grama. A diferença é que, agora, todos os olhos estão postos em mim, eu não posso falhar porque, se eu falhar, até a grama irá sofrer. Ela vai sobreviver, assim como eu talvez sobreviva, se meu corpo for preservado depois da morte. Eu tenho uma pequena chance, mas a grama ainda irá se espalhar quando eu tiver ido, dominando, do seu jeito singelo de dominar, as distâncias do grande Tahuantinsuyo.
Todos nós dependemos tanto da grama, embora nunca nos lembremos disso. Animais dependem da grama, insetos dependem da grama, o que seria da vida sem a erva dos campos, haveria vida nos campos sem ela; haveria vida?
Quantos seres têm seus habitats no tapete verde amarelado que se estende na distância, a partir do Cusco , o "umbigo do mundo", em todas as direções, como raios da terra, avançando por onde possam alcançar, imitando os raios solares, abrigando, alimentando.
Sonhando, querendo, implorando ao nosso Deus Sol, pois somos chamados Filhos do Sol, e nós realmente somos, que a grama dure enquanto durar nosso mundo, que ela se alimente de seus raios, das gotas do orvalho, da chuva, gerando fartura para nosso povo e que a sua sabedoria em resistir seja, para eles, a inspiração quando tudo parecer perder-se no vazio; quando ela mesma desvanecer-se em verdes amarelados e secos.
Sabe, Pai (2), eu acho que a grama do Tahuantinsuyo precisa de nós para sobreviver, ela não é assim tão forte quanto eu estive pensando; quem irá amá-la como nós a amamos? Nós somos o império do Sol e eu sei que, enquanto ele existir, enquanto os Filhos do Sol existirem, a natureza será respeitada, tudo será harmonia e respeito, pois este é o nosso lar, e nós estamos em casa.
 

                                                                             Chuqui Huipa
                                                                             Coya do Tahuantinsuyo
                                                                             esposa-irmã de Huascar Inca.
                                                                             (personagem histórica)


(1) Império Inca ou Império do Sol (em quéchua).
(2) Qhapaq Ñan, sistema rodoviário andino. Extensa rede de comunicação, comércio e defesa Inca de estradas que cobriam 30.000 km.
(3) Kay Pacha: Mundo terreno, onde todos os seres humanos se desenvolvem no tempo presente. Opõe-se a outros dois conceitos: Uku Pacha (o mundo  debaixo da terra, o mundo dos mortos, mas também o das raízes) e Hanan Pacha (o mundo dos deuses). Só quem realmente teve uma vida justa sobre a terra poderia entrar no Hanan Pacha, tendo em conta as suas boas ações realizadas no Kay Pacha, ou mundo terreno. 
Uku Pacha está entre o "mundo abaixo" e o "mundo interior". Refere-se a tudo o que está abaixo da terra, onde cavernas, lagos e cânions simbolizam as entradas para o mundo interior geográfico e são também as conexões com este plano de existência.
(4) Pai Sol do qual os Incas são Filhos.
(*) Mais de 11.000 espécies de gramíneas são conhecidas. Em 2004, uma espigueta e uma folha foram identificadas como uma subfamília do fóssil Pooideae aprisionada em âmbar birmanês com cerca de 100 milhões de anos.
(Pooideae é a maior subfamília de Poaceae com 4.200 espécies em 14 tribos e aproximadamente e 200 gêneros. Incluem alguns cereais principais como o trigo, a cevada, a aveia, o centeio e muitas gramas).