2.26.2021

FILHOS DO SOL - IV







CAPÍTULO IV


Segundo os ecologistas, toda vegetação alta, tropical e montanhosa, acima da linha contínua das árvores, mas abaixo da linha de neve permanente, é um bioma neotropical de alta montanha com uma vegetação composta principalmente por plantas rosetas gigantes, arbustos e gramíneas e é designada com o nome de páramo.

Nós passamos a maior parte do dia lidando com o barro grudento que nos tornava cansados demais, desanimados quando ficávamos atolados com lama acima dos joelhos e, mesmo assim, tínhamos de avançar. O esforço físico é tanto que inúmeras vezes precisamos de horas para nos reorganizar e descansar dos embates com a natureza. A exaustão me induz a pensamentos de derrota e conclusões infundadas de que o guia de Valverde não passa de uma farsa e uma brincadeira sem fundamento que tem durado devido a imensa quantidade de tolos dispostos a encarar tal empreitada em um lugar tão inóspito, capaz de trazer desgraça e morte e, de quebra, reforçar a ideia de que tudo acontece pela maldição aportada pelo tesouro àqueles que o buscam. Mas, o mapa está tatuado em minha mente e as instruções de Valverde soam como música e têm refrão. Estou ansioso por ver as estrelas, novamente. A vida inteira elas tem sido a inspiração para as minhas decisões e solução para as minhas dúvidas. No entanto, as chuvas constantes e intermináveis nos tem colocado em uma espécie de outro mundo, fora da realidade, ou da normalidade. Minhas noites tem sido escuras, geladas e vazias e alguns pesadelos não me deixam descansar a ponto de eu começar a pensar que posso adoecer e morrer e ser enterrado na lama do Llanganatis, com uma pequena cruz de madeira improvisada para lembrar da minha breve existência e de que a minha persistência me conduzira até este lugar.

Enquanto a lama me envolve e o som dos homens tenta nos conduzir para fora do pesadelo com gritos e advertências, eu sonho com a minha primeira vez aqui, quando a minha rebeldia me fazia desejar não seguir as orientações dadas aos turistas e eu me esforçava para fazer o meu melhor nesse sentido, usando roupas e calçados confortáveis, ao mesmo tempo quentes e impermeáveis, como se isso fosse mesmo me proteger do sol e da chuva, com uma porção de barrinhas de cereais e água mineral na mochila, uma garrafa térmica de café e outra de chocolate quente, tentando seguir as instruções do guia e me sentindo ridículo por fazê-lo. Atrasando os outros com minhas escapadas e constantes paradas para observar a beleza das plantas endêmicas e aquelas tão pequenas que ninguém nem sequer nota; atrapalhando aqueles cuja única intenção era aventurar-se a pé para além dos locais comuns de visita, aqueles sonhadores que ousavam ir um pouquinho além para ter a sensação de estar adentrando a verdadeira atração do Llanganatis, o romance, a aventura a magia de Atahualpa Inca e seu tesouro. Como se o sonho de todos nós não esbarrasse contra o paredão chamado Rumiñaui, o general do "olho de pedra", aquele que tudo vê, aquele que tudo vigia, aquele que, de dentro da morte, vela por seu Inca, seu irmão, seu amigo, e seus interesses reais; afinal nada parece ter mudado no mundo espiritual dos Incas e essa dimensão do espírito se encontra com o mundo físico bem aqui, justamente aqui, no Llanganatis. 

A camada de nevoeiro fora persistente, antes do aguaceiro, e as nuvens baixavam ao nível das árvores, encobrindo a vegetação, reduzindo a exposição à luz solar direta, quando o sol ousava brilhar e a abundância de epífetos resultava em farta cobertura de musgos e fetos e uma variedade de plantas com flor e muitas orquídeas. O solo, com forte tendência à umidade, por vezes tornando-se alagado, conferindo às turfeiras  uma rica variedade biológica, um mundo à parte no qual a precipitação que provém do nevoeiro alimenta a floresta nublada, aspergindo as gotículas que o compõem por toda a vegetação e, posteriormente, juntando-se, aumentando de tamanho e escorrendo para o solo.

Meu pensamento parece voar na névoa como se eu sonhasse acordado, sentindo-me em conformidade com a adesão das gotículas que se formam no nevoeiro, aderindo às folhas das árvores, aos troncos, sobre os quais se unem de maneira intensa em gota maiores que escorrem sobre essas superfícies até alcançar o chão. Como se a minha alma pudesse transcender a adversidade e eu me tornasse parte da natureza, em uma outra dimensão, fora da chuva intensa, fora da lama destrutiva. Parece que estou adentrando o espírito do Llanganatis, precipitando-me com as gotículas do nevoeiro capturadas pelas folhas, pelos ramos, em constante movimento, pelo soprar dos ventos, juntando-se umas às outras, tornando-se mais pesadas, precipitando-se como gotas de tinta transparente deixando entrever a cor do objeto que atinge em sua precipitação. O movimento continuo das folhas, dos ramos, no agitar dos ventos, como instrumentos de coalescência.

Mas, a realidade ainda é a chuva constante e a lama pesada. Lembro-me do que Loch escreveu em seu livro: "Tudo em que pisamos, tudo em que agarramos cedeu sob nós." Loch (1), que na primeira expedição enfrentara a chuva em trinta e sete dos trinta e nove dias de duração, terminara a segunda tão mortificado "setenta dias de inferno que fez toda a miséria anterior parecer nada" que, logo após a publicação do seu  livro contando sua experiência, teria tirado sua própria vida.  

A mente de um homem é terreno acidentado; é como uma floresta de nuvens que cresce densamente nas encostas onde vales parecem não levar a lugar algum. Difícil julgar o que faz um explorador atingir seu extremo, seu limite, sua fronteira final e irreversível. Acho que meu único medo é defrontar-me com meu limite, não tendo a certeza de superar minhas fraquezas e perecer como Loch, perdendo para ele mesmo, seu pior adversário.

A certa altura, escorregamos para fora do caos escalando toras que emergem da lama, passamos parte do tempo nos arrastando sobre pedras irregulares, quando, finalmente, rolamos para dentro de um arroio no qual encontramos um certo conforto, apesar da água gelada, livrando-nos, aos poucos, do barro que nos cobria, lavando nossas feridas, felizes por superar tanta adversidade de forma satisfatória.

Todos, indistintamente, temos as mãos cortadas e os braços arranhados sob roupas meio esfarrapadas mas não há tempo para lamentações. Nossos espertos carregadores improvisam, céleres, um acampamento enquanto o vento muda rapidamente as nuvens de lugar e algumas estrelas podem ser vistas, acrescentando insumos às nossas esperanças de que a chuva faça parte do passado.

Fernandez, o chefe dos carregadores nos serve uma caneca de um chá escaldante que meu paladar não consegue identificar. Meus olhos estão colados na face de Henri, fortemente rosadas enquanto duas olheiras fundas emolduram seus olhos cansados. Estou preocupado com seu aspecto doente e uma tosse persistente que ele tenta disfarçar sem resultado. Não consigo esquecer que Isabela Books morreu de pneumonia após três dias neste lugar.

--Termine seu chá e vá para dentro da barraca. Chega de ventos gelados, garoa e chuva por hoje. Agasalhe-se bem e tome pelo menos uma aspirina.

--Já tomei. Não se preocupe. Está tudo sob controle.

--Ótimo. E não se preocupe se ouvir barulho do lado de fora da barraca. São os ursos de óculos te chamando prá briga.

Ele sorri de volta quando eu tento animá-lo com uma piada.


As taxas de crescimento de duas espécies de roseta caulescente, Coespeletia timotensis e Espeletia Schultzii, foram avaliadas em um páramo andino perto de seus limites de elevação superiores. A altura do caule e da copa foram medidas no início e no final dos períodos de estudo, e as diferenças na estatura da planta foram divididas pelo número de anos para obter as taxas de crescimento anual. Como forma, "roseta" é usada para descrever plantas que crescem perpetuamente como uma roseta (da mesma forma o estágio imaturo de plantas como alguns fetos). Cada povoamento mostrou um aspecto, grau de variação, posição de declive e cobertura de solo bem uniformes, ainda que seu desenvolvimento possa ter sido afetado pelas diferenças de microsítio, como nutrientes de solo e o teor de umidade, a proximidade das rochas e as interações por competição das plantas.

A mortalidade foi semelhante para ambas as espécies, sendo maior para mudas de C. timotensis e plantas mais altas, que se inclinaram e tombaram, provavelmente devido ao distúrbio de geada no solo. Também houve mortalidade nas plantas maiores de E. Schultzii, mas elas permaneceram de pé e não tombaram. 

De repente. o céu mostrou-se pontilhado de estrelas e eu fiquei maravilhado. Depois, quase no mesmo instante,  um bólido, qual estrela cadente, veio rompendo a atmosfera, queimando na ação de seu movimento, desintegrando-se na direção das montanhas distantes, tombando morto na escuridão.









2.19.2021

FILHOS DO SOL

                                                               





                                                          Capítulo III



Eu estava observando as cores nas pétalas das orquídeas e os intensos tons de verde de suas folhas em um pequeno aglomerado de arbustos isolados na beira da encosta, ao mesmo tempo tentando me livrar de irritantes mosquitos que iam e vinham sem dar trégua, quando senti meu pé deslizar na lama encharcada sob o mato fofo, o movimento do meu corpo forçando alguns galhos contra meu rosto como garras de um animal selvagem. Escorreguei até ficar de joelhos quando o meu pé, simplesmente, resvalou para o vazio e eu tive de me agarrar aos mesmos galhos que me feriam para não rolar no despenhadeiro. Pude ouvir os homens gritando na distância e só então percebi que a névoa cobrira tudo repentinamente. Eu estava só e teria de me virar para me safar do perigo, as mãos agarradas aos galhos, os pés calcados no emaranhando da ramagem dependurada na vertente. 

 Os segundos pareceram horas enquanto eu tentava me acalmar, consciente de que um gesto precipitado me lançaria no vazio dentro da morte. A névoa parecia compacta demais e eu mal podia ver a mim mesmo quando senti alguém agarrar-me pelo pulso enquanto outra mão puxava-me pelo cano da bota e eu encontrei forças para impulsionar meu corpo para cima e para a vida, sentindo a respiração ofegante do meu salvador contra o meu rosto quando nós dois rolamos juntos sobre a vegetação, cortando mãos e pulsos na grama afiada do páramo. 

A névoa pareceu desvanecer um pouco e eu pude ver a silhueta magra de Henri tentando se aprumar contra o recorte esfumado da montanha. Felizmente havíamos colocado os casacos e as botas de cano longo, ou poderíamos ter nos ferido ainda mais. Rimos enquanto tentávamos nos perceber dentro da névoa fugidia.

--Obrigado, amigo! - minha voz pareceu trêmula demais e eu tossi tentando me recompor.

Henri ficou em silêncio e eu me senti muito tolo dentro da loucura dessa circunstância. Soltei o corpo sobre a grama, apoiando-me nos cotovelos, tentando, ao mesmo tempo, relaxar e evitar o contado da minha cabeça com a relva cortante. Um cansaço extremo forçou-me contra o chão e eu fiquei deitado de costas olhando um rasgo de azul suave enquanto a relva se dissipava na direção da montanha. De repente o azul pálido de seus olhos me puxaram de volta, atraindo-me como o feitiço do ouro de Atahualpa. 

Henri estava de pé tentando equilibrar-se enquanto tirava o casaco e eu pude ver sua camiseta branca rasgada e manchada de sangue, assustando-me com a ferida que sangrava perto de seu coração.

--Você está ferido.

--Não é nada.

Levantei-me rápido, o mais rápido que pude, quando nossas faces ficaram muito próximas e iluminadas pelos primeiros raios de sol que víamos em dois dias.

--Não se preocupe. Não é nada. -estávamos muito próximos quando nos vimos cercados pelos outros.

--Todos bem? Estão todos bem?- alguém perguntou e todos começaram a falar ao mesmo tempo, cada um com uma conversa diferente, uns em espanhol, outros em inglês, ninguém fazendo questão de entender o outro. Não houve nenhum constrangimento, apenas arranhões e a ferida no peito de Henri. Logo estaríamos sentados em círculo, tentando fazer uma refeição descente, ouvindo estórias e histórias da boca dos carregadores.

Um bando de antas correu para o mato quando nos aproximamos do acampamento e das mulas, parecendo mais amigos do que, realmente, éramos; todos sorridentes e estropiados, famintos e extenuados. Era nosso segundo dia no Llanganatis.






FILHOS DO SOL







CAPÍTULO II



Antes de nos encontrarmos ao pé dos três cerros, nos encontramos no apartamento de Henri na cidade de Londres. Passamos a noite, e parte da manhã, acordados, conversando sobre o tesouro de Llanganatis.

Tentei argumentar com Henri sobre o que já houve, no passado de Llanganatis, com aqueles que ousaram sonhar com esse tesouro que poderia não passar de uma fata morgana nos sonhos de tolos. Tentei demovê-lo, mais como uma estratégia furada de sentir-me um pouco mais em paz quanto a minha vontade de ir para lá sozinho, com a única pretensão de adquirir conhecimento, como uma espécie de Darwin dos tempos atuais. Minha pretensão morria no esboço de seus sorrisos e eu pensei que qualquer um poderia, facilmente, apaixonar-se por ele, duvidando que alguém tivesse a coragem de confessar diante desse ser especial que ele era, frente a sua terrível capacidade de nos colocar, a todos, cada um de nós, em seu devido lugar.

--E quanto a Brun, George Brun, o especialista em balística, picado por um escorpião? Foi na segunda expedição de Loch. A primeira havia durado trinta e nove dias, trinta e sete de chuvas torrenciais. Mas, a segunda...
--A insistência dos exploradores equivale a de nós, botânicos.
--Eu sei que somos loucos, mas quem não é? Só os pálidos de medo não ousam tentar transformar seus sonhos em realidade.
--Nem todos são loucos, Henri. Nem todos são covardes. Essa é uma definição muito simplista da alma humana.
--Infelizmente, ou felizmente, não sei, a segunda viagem de Loch ao Llanganatis foi a mais cansativa, setenta dias no inferno. Se tudo fosse a contento não estaríamos aqui, agora, e, provavelmente o tesouro estaria em um museu e nos encontraríamos apenas para tomar cerveja e reclamar de nossas esposas megeras e nossos filhos birrentos.
Eu ri muito enquanto o observava tão sério.
--Ah, não, não faríamos nada disso. No máximo uma namorada e iríamos para o Egito em busca de achados arqueológicos.
--Você não entende. Isso é mais sério do que parece. Eu preciso fazer isso. Algo me atrai para aquele lugar. Encontrar o ouro é só uma motivação que eu tento manter preservada. Porque eu não sei o que me move de verdade. É uma coisa de alma.
--Quando foi que isso aconteceu? Quando começou a sentir isso?
--O próprio Loch escorregou em uma ravina, quebrando duas costelas e um de seus soldados foi arrastado para dentro das corredeiras para nunca mais ser visto. Loch, dois soldados e Brun sobreviveram. Por quanto tempo alguém sobrevive depois de ter seus sonhos destruídos e o corpo moído pelas adversidades? Loch ainda viveu para publicar seu livro. Precisava fazer isso. Então, tirou a própria vida. Sozinho em seu mundo gigantesco. O cara era um gigante e agora não passa de uma lenda esquecida. Não quero que aconteça isso comigo. Mas, se acontecer, pelo menos terei morrido pela melhor causa.
--Talvez seja melhor não falarmos mais sobre isso. Vamos esquecer os caras. Estão mortos mesmo.
--Loch escreveu em seu livro: "Tudo em que pisamos, tudo em que agarramos cedeu sob nós." Falava sobre o que aconteceu nessa expedição mas, eu vejo além disso. O que aconteceu estava escrito em sua alma, tudo ruiu dentro dele até não haver mais nada. Escrever aquele livro era tudo o que lhe restava. "Savage and barbarous land of false dreams and broken promises.", ele disse.
--"Terra selvagem e bárbara de sonhos falsos e promessas quebradas."  Vamos nos manter racionais, nós dois.
--Antes dele, o Coronel Brooks e sua esposa Isabella viveram uma tragédia lá que  se derramou para fora como o espumar de um louco. Em sua primeira viagem sofreu um motim. eu posso imaginar o que terá acontecido. Mas, não foi o bastante. Ele voltou levando sua amada esposa. Ele a amava tanto. Eu posso imaginar o que ele estava sentindo.
--Parece que ela não era sua esposa.
--Mas, ele a amava. Aquelas chuvas torrenciais de sempre não deram trégua. De nove a doze meses de chuvas e névoas geladas. Ela adoeceu em plena montanha, bem no meio do nada. Em poucos dias ela morreu. Talvez ele devesse ter morrido junto. Resolveu voltar a Nova Iorque e foi parar num hospício.
--Isso tudo parece gerar muita superstição sobre o lugar, sobre o tesouro.
--Parece que todos, de uma forma ou de outra, são atingidos no coração. Bob Holt, literalmente.
--O geólogo americano.
--Década de sessenta. Não faz tanto tempo assim. Escorregou e caiu sobre um tronco de árvore quebrado e pontiagudo que o acertou diretamente no coração.
--São coinci...
--...dências. Não. Tem algo aí. Algo grande, enorme; e forte, muito forte. Como um polvo gigantesco e seus tentáculos que nos puxam de volta para a morte. E ele sempre vence.
--Você não acha que o tesouro está amaldiçoado!? 
--Não. Nem tudo é para todos. Está lá por um motivo. Está esperando por aquele que deve encontrá-lo.
Eu estou sorrindo ao olhá-lo no olhos.
--E você sabe quem é essa pessoa?
--Eu tenho o direito de ter um palpite.





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2.16.2021

FILHOS DO SOL





 CAPÍTULO I


Parei, mais uma vez, para olhar o mapa. Obviamente, as coisas mudaram, pode ser que a paisagem tenha sido alterada de forma significativa porque a vegetação está em contínuo crescimento transformando a flora local. Não se descarta a possibilidade de que raios, nas tempestades, talvez possam causar incêndios, mudando o bioma das florestas, ou dos páramos, mesmo que, depois de algum tempo, tudo pareça natural e preservado. O local do tesouro de Atahualpa pode ter sido perdido para sempre como resultado dos terremotos que ocorrem regularmente nas montanhas densamente arborizadas. 

Encontrar o ouro do resgate de Atahualpa seria a menor de minhas preocupações; na verdade, eu não quero encontrá-lo. A prioridade sempre foi descobrir novas espécies botânicas e a fantástica oportunidade de ter em mãos uma variedade de plantas que eu jamais sonharia encontrar no permanente habitat de concreto da minha cidade. Com o mapa diante de mim e um suspiro, olho para os companheiros de exploração e o cansaço nos olhos deles me faz despertar para o verdadeiro propósito da missão. Minhas prioridades não são relevantes pois, depois de tê-los arrastado para isso com o objetivo de encontrar o tal tesouro, o objeto de nossa concentração deve ser a localização do ponto exato de onde se tem a última, ou única, notícia do ouro; a todo custo, a toda pressa, porque parece que, aqui, o tempo passa mais rápido, as distâncias se alargam e vamos nos tornando mais fracos, nossos itens de sobrevivência diminuem consideravelmente, e ainda teremos de voltar, sãos e salvos, pelo mesmo caminho.

O guia, o Derrotero de Valverde, começa assim...

¨Situados en el pueblo de Píllaro, preguntad por la hacienda de la Moya y dormir la primera noche a buena distancia sobre ella y preguntad allí por la montaña de Guapa... ¨ 

Pillaro é uma cidade um pouco menor que Ambato e fica em terreno mais alto, no lado oposto do rio Patate, apenas um poucos quilômetros de distância, embora a jornada até lá seja muito prolongada por ser necessário passar a quebrada profunda do Patate, o que ocupa uma hora inteira. A fazenda de Moya ainda existe; e o Cerro de Guapa é claramente visível a leste-nordeste de onde estou escrevendo. 

"...desde cuya cima, mirando al Este y teniendo Ambato a la espalda, podréis divisar los tres Cerros Llanganati en la forma de un triángulo, en cuyos declives hay un lago, hecho por la mano del hombre, dentro del cual los antiguos arrojaron el oro que ellos habían preparado para el rescate del Inca cuando ellos supieron de su muerte. "

Eu ia dizer alguma coisa quando olhei e vi Henri aproximando-se de nós com seu chapéu de explorador que o faz parecer mais alto ainda, sorrindo meio sem graça, balançando ligeiramente a cabeça como quem pede desculpas, abrindo os braços para um cumprimento amistoso e sincero. 

Deveríamos ter nos encontrado em Pillaro mas, como sempre Henri se atrasou. Sem perda de tempo, tirou o guia da minha mão e começou a murmurar enquanto olhava para as montanhas.

-- Os três Llanganatis vistos do topo do Guapa são supostamente os picos Margasitas, Zunchu e o Volcan del Topo. 

Então, voltou-se para cumprimentar, um por um, todos homens, exploradores, ou carregadores, tratando a todos com o mesmo entusiasmo de sempre, o que o faz amado por onde quer que vá. Olhei o rosto dos homens e o cansaço pareceu haver desaparecido. Sorri, incrédulo, me sentindo, eu mesmo, um pouco cheio de energia. Com um sotaque inglês um pouco carregado, Henri leu uma parte do que estava escrito:

"Desde el mismo cerro Guapa también podrás ver la selva, y en ella un manchón de sangurimas que sobresalen de la dicha selva, y otro manchón que llaman flechas, y esos manchones son la marca principal por la cual te guiará, dejándolos un poquito a mano izquierda."

--Não vamos cometer o mesmo erro de Spruce. Já sabemos com certeza que as sangurimas não são Cecropia ou algo relacionado. Vamos em busca de um aglomerado de Espeletia, da família das Asteraceae.

Eu argumento que não podemos ter certeza disso, já que ninguém tem feito progressos nas tentativas de encontrar o lugar do tesouro.

Vejo-o caminhar até mim, retirando o chapéu e entrelaçando os finos cabelos loiros entre os dedos, onde uma discreta tatuagem se firma como parte de seus mistérios.

--Meu amigo, para encontrar algo que procuramos fora, precisamos antes encontrá-lo dentro de nós. Está lá em algum lugar e estamos bem perto. Eu sei porque está dentro de mim. Você é meu amigo, mas eu não viria aqui porque você é meu amigo. Estou aqui porque sou parte de tudo isso. Está tatuado dentro de mim, dentro do meu coração, da minha alma.

Abriu um pouco os braços e girou ao redor de si mesmo.

--Eu sei que está aqui. É como se eu mesmo o tivesse colocado lá.


                                                                   

                                                                   *****


Estou escrevendo em forma de livro. Espero que gostem e voltem para acompanhar o desenrolar da história. 

Esta é uma história de ficção baseada em fatos reais e os personagens foram criados por mim, podendo, ou não, ter qualquer semelhança com personagens reais ou históricos. Meu intuito é dar minha humilde contribuição para manter viva a memória do Império Inca. Obrigada e volte para ler o Capítulo II.




2.05.2021

A MANCHA CONSPÍCUA DE SANGURIMAS NO LLANGANATES COMO DESCRITO NO DERROTERO DE VALVERDE

 













          A mancha conspícua de sangurimas que salta à vista e chama a atenção.

¨As "Sangurimas" na floresta são descritas para mim como árvores com folhagem branca; mas eu não consigo descobrir se elas são uma espécie de Cecropia ou de algum gênero relacionado. As "Flechas" são provavelmente a gigantesca cana-de-flecha, Gynerium saccharoides, cuja haste floral é o habitual material para flechas de índio. ¨                                                                                                                      Richard Spruce

O botânico escocês Richard Spruce, viajou pela América do Sul, a partir da costa  atlântica brasileira até a costa do Pacífico do Equador, de 1849 a 1864.  Foi o primeiro etnobotânico da América do Sul (1), descrevendo pela primeira vez as plantas usadas por várias tribos amazônicas, como as espécies alucinógenas usadas pelos xamãs e as espécies tóxicas usadas como ingredientes em venenos. Registrou o vocabulário de 21 línguas indígenas amazônicas, descobrindo um grande número de novas espécies de plantas, incluindo 400 espécies de briófitas como musgos e hepáticas, que eram sua especialidade. Mas, na verdade, as sangurimas são Espeletia, um gênero botânico pertencente à família Asteraceae. 

Espeletia, comumente conhecida como 'frailejones' ("grandes monges"), é um gênero de subarbustos perenes, da família do girassol. O gênero foi descrito formalmente pela primeira vez em 1808 e batizado em homenagem ao vice-rei de Nova Granada, José Manuel de Ezpeleta.

As plantas da Espeletia grandiflora vivem em grandes altitudes no ecossistema dos páramos. O tronco é espesso, com folhas suculentas e peludas dispostas em denso padrão espiral e as folhas murchas ajudam a proteger as plantas do frio. As flores são semelhantes às margaridas, geralmente amarelas.

A Espeletia é bem conhecida por contribuir para o mundo na sustentabilidade da água, ao capturar o vapor de água das nuvens que passam em seu tronco esponjoso,  liberando-o através das raízes no solo, ajudando a criar vastos depósitos de água subterrânea de alta altitude e lagos que eventualmente formarão rios. 

 

(1)  Etnobotânica é um ramo da Botânica que estuda o papel tradicional de certas plantas na vida e folclore de determinada raça ou povo.